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Pasquale Cipro Neto

'Nem que a vaca tussa'

Em muitos casos, a opção por um ou outro modo verbal não obedece a critérios 'matemáticos'

Dilma Rousseff disse que, se conquistar o segundo mandato, "nem que a vaca tussa" haverá alterações na legislação que trata das férias e do 13°.

A frase de Dilma contém a forma "tussa", do presente do subjuntivo do verbo "tossir", que, de acordo com o "Houaiss", é o único da nossa língua que termina em "-ossir".

É interessante o que ocorre com o presente do subjuntivo no português oral do Brasil e, mais particularmente, em algumas regiões do país. Em São Paulo, por exemplo, são comuns construções como "O que você quer que eu faço?" ou "Você quer que eu compro?" ou ainda "Mas ela quer que eu vou?", com as quais o falante parece deixar clara a disposição de fazer, comprar e ir. No padrão formal escrito, as formas "faço", "compro" e "vou", do presente do indicativo, tenderiam a ser substituídas pelas do subjuntivo ("faça", "compre" e "vá", respectivamente).

Em outras regiões do país, mesmo na oralidade predominam formas comuns no padrão formal. Lembro que, quando entrevistei Caetano Veloso pela primeira vez (já lá se vão 16 anos), ouvi dele a seguinte observação, feita assim que desceu do carro que o tinha ido buscar para a gravação na TV Cultura: "Rapaz, aquilo que você disse quando comentou a letra de Pra que discutir com madame?' é coisa de paulista; na Bahia ninguém faz isso não".

Para minha honra e alegria, Caetano tinha visto um programa em que abordei a letra dessa canção (de H. Barbosa e J. de Almeida), em que está a passagem "Madame não gosta que ninguém sambe". Ao comentar o emprego da forma "sambe", do presente do subjuntivo, citei o que está no terceiro parágrafo deste texto ("O que você quer que eu faço?" e afins), mas de fato não disse que isso não é comum no país todo.

E que diferença há entre o indicativo e o subjuntivo? Bem, como se sabe, indicativo e subjuntivo são modos. O primeiro põe o processo expresso pelo verbo no plano da certeza, da afirmação, da realidade ("Leio diariamente jornais de vários países"); o segundo põe o processo no plano da suposição, da dúvida, do irreal, do desejo ("Sugiro-lhe que leia diariamente jornais de..."). Note que, no último exemplo, o fato de eu sugerir que você leia não garante que isso realmente venha a ocorrer.

Em muitos casos, a opção por um ou outro modo não obedece a critérios "matemáticos", já que a língua não funciona assim. Quando se diz, por exemplo, algo como "Suponho que ela encarne o espírito da besta-fera", expressa-se (com a forma "encarne", do modo subjuntivo) mais dúvida do que certeza sobre a encarnação da besta-fera. A troca de "encarne" por "encarna", do indicativo ("Suponho que ela encarna o espírito..."), inverteria a relação, isto é, expressaria mais certeza que dúvida.

Que os exatoides da língua não digam que a última construção não é possível. De fato não é a mais frequente, mas é perfeitamente possível e encontradiça nos bons autores.

Bem, voltando à frase de Dilma Rousseff, convém lembrar que a locução "nem que", equivalente a "mesmo que", "ainda que" etc., normalmente "empurra" o verbo para o subjuntivo, o que explica a presença de "tussa", flexão formada, como 99,99% das flexões do presente do subjuntivo, a partir da primeira pessoa do singular do presente do indicativo ("tusso", nesse caso).

A probabilidade de uma vaca tossir é zero, ou seja, esse fato é irreal, o que explica a presença de "tussa", forma que, cá entre nós, é bem feinha. Não é por acaso que a construção "Espero que ele pare de tossir" é bem mais provável do que "Espero que ele não tussa mais". É isso.


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