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Tudo sobre a ditadura militar

Um país partido ao meio

Contaminada pela Guerra Fria e pelo desprezo às regras do jogo democrático, disputa política rachou brasileiros desde a renúncia de Jânio e culminou com golpe militar contra Jango

RICARDO BALTHAZAR EDITOR DE "PODER" LUCAS FERRAZ DE SÃO PAULO

A deposição do presidente João Goulart em 1964 foi o desfecho de um período turbulento da história do país, em que tanto a direita como a esquerda exibiram desprezo pelas regras do jogo democrático e reduzido interesse em negociar compromissos.

Militares, políticos e empresários tramaram contra Jango desde sua posse como presidente, em 1961. A articulação entre os vários grupos que animaram a conspiração sempre foi, porém, muito frágil. Só ganhou a coesão necessária para a derrubada do governo nas semanas que antecederam o golpe, quando pareceu que Jango decidira emparedar os partidos conservadores contrários às reformas por ele anunciadas.

Quando as tropas do general Olympio Mourão Filho desceram de Juiz de Fora (MG) em direção ao Rio, em 31 de março de 1964, todos foram pegos de surpresa. Não havia um plano para sublevar outras unidades militares nem um líder para conduzir a rebelião.

Mesmo assim, Jango caiu em dois dias, sem que fosse disparado um tiro contra seu governo. As tropas de Mourão dispunham de pouco armamento e demoraram horas para começar a se mover. As forças enviadas pelo governo para conter os rebeldes mudaram de lado assim que os encontraram.

Oficiais que até 31 de março juravam fidelidade a Jango o abandonaram no dia 1º de abril. Aliados que se diziam dispostos a lutar contra o golpe ficaram à espera de uma decisão do presidente, mas ele logo percebeu que estava isolado e foi embora do país sem impor resistência.

Fazendeiro gaúcho que fora ministro de Getúlio Vargas e era seu principal herdeiro político, Jango sempre foi alvo de desconfiança dos militares. Em 1961, quando Jânio Quadros renunciou, os ministros militares lançaram manifesto contra a posse de Jango, que era o vice-presidente eleito.

O documento tratava Jango como um perigoso agitador comunista, uma descrição com a qual hoje muitos teriam dificuldade de concordar, mas que refletia a paranoia criada pela Guerra Fria.

O mundo estava dividido em dois blocos, um liderado pelos Estados Unidos e outro pela então União Soviética, e os militares brasileiros acreditavam que sua principal missão era impedir que o país aderisse ao bloco comunista.

GOLPE FRACASSADO

Em 1961, eles fracassaram. Grupos nacionalistas de esquerda, liderados pelo governador gaúcho Leonel Brizola, que era cunhado de Jango, ameaçaram resistir de armas na mão. Militares e até políticos que não morriam de amores por Jango reagiram.

A crise provocada pela intimidação dos ministros militares acabou em duas semanas, com a adoção do parlamentarismo como sistema de governo e a posse de Jango.

O novo arranjo foi desenhado pelo Congresso para limitar a atuação do presidente, mas durou pouco. Jango começou a trabalhar para restaurar seus poderes assim que tomou posse, provocando atritos com a maioria conservadora no Congresso.

Empresários fundaram um centro de estudos para difundir propaganda anticomunista e desestabilizar o governo, o Ipes (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais). Militares descontentes passaram a se reunir com políticos de oposição, como o governador da Guanabara (Estado na região do município do Rio, extinto em 1975), Carlos Lacerda.

A esquerda pressionava por mudanças em várias áreas, mas as reivindicações dependiam de alterações na Constituição --e era impossível fazê-las sem apoio do Congresso, onde os conservadores abrigados na UDN (União Democrática Nacional) e no PSD (Partido Social Democrático) formavam maioria.

A prioridade da esquerda era a reforma agrária. A Constituição só permitia desapropriações se os donos de terra fossem pagos em dinheiro, o que inviabilizava qualquer programa. A esquerda queria que as desapropriações fossem pagas com títulos públicos, mas a ideia inquietava os fazendeiros e por isso não avançava no Congresso.

Nas eleições de 1962, o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) de Jango dobrou sua representação na Câmara dos Deputados e passou a controlar a segunda maior bancada, com 28% das cadeiras. Logo depois, num plebiscito em janeiro de 1963, oito de cada dez eleitores votaram pelo fim do regime parlamentarista.

As vitórias deram ânimo a Jango, mas os conservadores mantiveram a maioria no Congresso. Muitos haviam recebido clandestinamente apoio financeiro do governo americano, que injetou milhões de dólares na campanha via Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), criado em 1959.

Jango lançou um programa de ajuste econômico, o Plano Trienal, e encaminhou um novo projeto de reforma agrária ao Congresso, mas colheu fracassos nos dois casos.

O plano econômico não obteve apoio dos sindicatos nem dos empresários e foi abandonado cinco meses depois. A proposta de reforma agrária assustou a direita, que a interpretou como um ataque ao direito de propriedade, e naufragou no Congresso.

REBELIÃO

A situação se complicou em setembro de 1963, com uma rebelião de sargentos e suboficiais da Aeronáutica e da Marinha em Brasília. O movimento foi sufocado em poucas horas, mas alarmou a cúpula militar ao expor a união dos rebeldes à organização sindical CGT (Comando Geral dos Trabalhadores).

Os militares passaram a pressionar Jango para que pusesse um freio nos sindicatos, mas o presidente hesitava. Ele precisava do apoio da esquerda para enfrentar seus adversários à direita. Acatando uma sugestão dos ministros militares e alegando que a radicalização ameaçava a segurança do país, Jango propôs então ao Congresso a decretação de estado de sítio.

O plano era usá-lo para intervir na Guanabara e em São Paulo, afastando Lacerda e o governador paulista, Adhemar de Barros, mas até aliados de Jango suspeitavam que também podiam ser atingidos. A repercussão foi tão ruim que, isolado, o presidente teve de retirar o pedido.

Diante das dificuldades para alcançar um compromisso em torno das reformas, a esquerda e os sindicatos concluíram que a saída era agitar as ruas, buscando na mobilização popular o apoio que faltava a Jango no Congresso.

MULTIDÕES NA RUA

Um comício na noite de 13 de março, no Rio, marcou a adesão do presidente à estratégia. Quem olhou a multidão reunida na Central do Brasil para ouvi-lo pôde ver as bandeiras do PCB (Partido Comunista Brasileiro) misturadas a cartazes pela permanência de Jango no cargo além do prazo previsto na Constituição.

Quem andou pelos bairros ricos da zona sul carioca naquele mesmo dia viu famílias católicas acendendo velas nas janelas dos apartamentos, para espantar o perigo comunista do Brasil.

Muitos achavam que o objetivo de Jango era dar um golpe para fechar o Congresso, convocar uma Constituinte e continuar no poder, aliado aos sindicatos e amparado pelos comandantes militares que se mantinham leais a ele.

No fim das contas, Jango não deu nenhum passo para romper com a legalidade, mas sua aliança com a esquerda contribuiu para unir os vários grupos que conspiravam contra o seu governo.

No dia 19, uma semana depois do comício do Rio, uma multidão foi às ruas de São Paulo protestar contra o governo, naquela que se tornou conhecida como a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Mulheres de classe média, líderes religiosos e políticos de oposição estavam na linha de frente da passeata.

Oficiais ainda hesitantes começaram a se mexer, como o chefe do Estado Maior do Exército, general Humberto Castello Branco. Um dia após a marcha de São Paulo, numa mensagem a seus subordinados, ele disse que o papel das Forças Armadas era defender a democracia contra "ameaças" como o CGT.

Um novo episódio de insubordinação reforçou os temores dos militares no dia 25, quando marinheiros se revoltaram contra medidas disciplinares tomadas pelo Ministério da Marinha e se entrincheiraram na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio.

No dia 30, Jango foi ao Automóvel Clube do Rio para uma reunião da associação dos sargentos. Foi aclamado ao chegar, sentou-se ao lado do líder dos marinheiros e fez um discurso incendiário. Os conspiradores, que assistiram a tudo pela televisão, encontraram ali o pretexto que faltava para entrar em ação.

APOIO AMERICANO

Os principais comandantes militares aderiram aos golpistas em poucas horas, deixando o presidente sem condições de reagir. Enquanto Jango estava em Porto Alegre, o senador Auro de Moura Andrade, presidente do Congresso, declarou vaga a Presidência e abriu caminho para a posse de um novo governo.

Os Estados Unidos acompanharam tudo de perto. Com medo de que o Brasil aderisse ao bloco comunista, o governo americano ajudou a desestabilizar Jango ao financiar seus adversários no Congresso e passou a discutir em 1963 a possibilidade de uma intervenção militar no país.

Na hora decisiva, os americanos desencadearam a Operação Brother Sam, enviando uma força naval para apoiar os golpistas. Como o golpe se consumou logo e sem resistência, ela voltou para casa antes de se aproximar da costa brasileira.


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