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O “espaço comum” dos programas não “preenche” nada, exceto a necessidade de não pensar em coisa nenhuma, de experimentar nossa identidade nacional como uma banalidade consentida

O direito de emburrecer

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Ed Viggiani/Folha Imagem
Efigênia de Souza assiste programa infantil em botequim no centro velho de São Luis, Maranhão, durante seu horário de almoço

Países como Itália, Argentina, França ou Alemanha certamente contam com um sistema educacional bem melhor do que o nosso, e temos o hábito de considerar “culta” a sua população. Basta ligar a TV a cabo para perceber, contudo, que todo país tem suas versões de Xuxa e Silvio Santos, que os telejornais todos se assemelham, que o lixo é total.

Não vejo, assim, muita coisa de específico no relacionamento dos brasileiros com a TV. Os americanos gastam mais horas à frente do aparelho; as novelas, aqui, ganharam uma predominância que não parece se verificar em outros países. Mas talvez seja irrealista considerar que só no Brasil a televisão é o que é: uma máquina de emburrecimento coletivo, de manipulação política e de criação de necessidades imaginárias.

A vontade de emburrecer _não falo de distrair-se, não falo de evasão ou de entretenimento_ é um dado real, sem dúvida não mensurável pelas pesquisas de opinião pública. Lembro-me de épocas em que voltava da redação do jornal muito tenso, com “a cabeça quente”, como se diz. Não havia outra coisa a fazer em casa além de ligar a TV. A desculpa era ver o último noticiário da noite _teria acontecido mais alguma coisa? Obviamente, não tinha acontecido coisa nenhuma, e se tivesse, não seria pelo telejornal que eu haveria de entender minimamente os fatos

O bom era ligar a TV simplesmente para deixar alguma coisa diante dos olhos, que não me exigisse nenhum esforço. Tudo se resume a pura lavagem cerebral. Eu não queria me distrair. Queria reduzir a níveis próximos de zero a atividade dos neurônios: coisa que não se consegue nem durante o sono, pois sonhar muitas vezes dá trabalho.

O poder da televisão é de ordem neurológica; atrai o olhar porque a tela é brilhante. Ao lado da mais linda mulher a nos dirigir declarações de amor, não conseguiremos desgrudar de Chaves ou de Renato Aragão se tivermos a insensatez de deixar o aparelho ligado.

Isso vale para franceses, russos, americanos ou brasileiros. Qualquer cotidiano violento e estressante justifica o uso da TV como narcótico.

O que temos de específico não é, portanto, a burrice da nossa TV. A diferença da televisão brasileira com as de países mais desenvolvidos não está nos seus programas, mas no tipo de relação que estabelece com a realidade.

O Brasil tem uma das maiores taxas de desigualdade social do planeta, e nítidas disparidades regionais. Se um programa de auditório ou um ramerrão novelesco pode ser consumido pela estressada classe média urbana de qualquer país, o que se torna significativo no Brasil é o fato de que se atinja, com igual eficiência, grupos sociais totalmente diferentes e incomunicáveis entre si.

Não é por acaso que as telenovelas se dividam em “rurais” e “urbanas”. Mais do que contrastar as duas realidades, servem para homogeneizá-las num mesmo código; na fazenda de gado ou na selva de pedra, haverá sempre a vilã ciumenta, o patriarca em declínio, o casalzinho moderno. Haverá também pobres e ricos. Que o amor vença ou não as barreiras sociais, isso é um detalhe secundário. O decisivo é que, ao contrário da vida real, esteja estabelecido nas novelas um espaço comum, um círculo de convivência em que os contrastes não sejam necessariamente chocantes, e em que todos, do rico ao pobre, do capiau ao “clubber”, estejam submetidos à mesma lógica _a do clichê, ou, como dizem atualmente, a da “dramaturgia”.

Costuma-se usar o termo “espaço público” quando se quer fazer referência ao âmbito dos debates de opinião, das disputas políticas e ideológicas entre os cidadãos. Parece-me patente que a televisão brasileira não é um elemento desse “espaço público” _talvez só as mesas redondas de futebol cumpram essa função. Coisas como as novelas, o “Fantástico”, o “Casseta e Planeta”, os telejornais e os programas do Silvio Santos e da Ana Maria Braga representam a constituição, não de um “espaço público”, e sim de um “espaço comum” _nos quais o país não nega suas desigualdades e aberrações, mas como que as domestica, maquia, estiliza e reitera em miniatura.

Reduzidos na “telinha”, os absurdos da nossa realidade se submetem a um poder que não é exatamente o do magnata que manipula um debate entre candidatos _embora isso possa acontecer. O poder está na linguagem televisiva: na indiferença com que tudo se sucede; na velocidade com que se passa de um “bloco” a outro; no fato de que nossa história, nossa sociedade, nossos problemas estejam ao alcance do controle remoto.

O telespectador tem a ilusão _essa a maior ilusão_ de que pode controlar tudo mudando de canal, de que a televisão é um aparelho como qualquer outro. O que se mostra ali, o que se deixa de mostrar, não é um mundo falso, escapista, delirante: é a falsidade de que todos os brasileiros vivem num mesmo mundo, compartilham da mesma linguagem, aceitam as mesmas verdades, têm as mesmas cores e o mesmo brilho. “A novela”, diz Esther Hamburger no capítulo sobre televisão da “História da Vida Privada no Brasil” (Editora Companhia das Letras, volume 4) “atualiza seu potencial de sintetizar uma comunidade imaginária, (...) mais branca e mais permeável à ascensão social que a sociedade real.”

Escapismo, entretenimento, fantasia, eis coisas que o telespectador brasileiro encontra muito mais nos anúncios do que na programação. É na propaganda que ganham primeiro plano, o ficcional, o inventivo e o qualitativamente superior.

Em torno dos anúncios, há um espaço comum, vazio, cotidiano e vulgar: o dos programas. Não “preenche” nada, exceto a necessidade que temos de não pensar em coisa nenhuma, não imaginar, não viver; de experimentar nossa identidade nacional, nossa condição de cidadãos e de brasileiros, nossa posição de classe, como um estado da matéria, como uma situação vegetativa, como uma banalidade consentida


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