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Consultor da presidência da rede fala de seus 30 anos
à frente da emissora


A Globo segundo Boni

MARIO CESAR CARVALHO

ENVIADO ESPECIAL AO RIO


Ana Carolina Fernandes/Folha Imagem
José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni
No Brasil ordinário, a censura acabou em 1988, sem comício e sem foguete, por decisão do Congresso constituinte. Na rede Globo, porém, a intervenção do governo na TV persistiu até 1995, segundo José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, consultor da presidência da emissora. "A TV Globo criou-se debaixo de pressão do governo e tinha hábito de aceitar as instruções do Planalto. Virou

um vício, e a libertação do vício demorou muito”, conta. Só acabou, diz, com a entrada de Evandro Carlos de Andrade na direção de jornalismo, há cinco anos.

Boni, 64, sabe do que fala. Durante 30 anos, de 1967 a 1997, foi o responsável pela programação da emissora. Chegou à Globo quando ela ocupava o quarto lugar no ranking de audiência no Rio; quando foi afastado da vice-presidência de Operações, ela já era a quarta maior rede do mundo.

Em entrevista à Folha, feita num escritório fora da Globo, onde vive até abril de 2001 uma espécie de exílio (não faz nada para a Globo nem pode fazer para os concorrentes), Boni foi menos diplomático com a família Marinho do que costuma ser.

Durante a campanha presidencial de 1989, nas discussões sobre o debate na TV entre Lula e Fernando Collor, nas quais a Globo era acusada de favorecer Collor, Roberto Marinho rebateu uma crítica de Boni dizendo que ele entendia de TV, mas não de política. Agora, Boni dá o troco: “Posso entender menos de fazer política do que o dr. Roberto, mas, como não estou envolvido, posso, de fora, analisar melhor.”

Folha - Como era a Globo quando o sr. entrou na emissora em 1967?

Boni - A televisão era extremamente confusa e desorganizada. Nossa TV veio do rádio e do teatro. Não tínhamos aqui o que os americanos tinham lá: a indústria cinematográfica e um sistema de produção. O que fizemos, inicialmente, foi dotar a TV de bases industriais para fazer programas que interessassem ao mercado.

Folha - Como era a audiência?

Boni - Aqui no Rio era a quarta colocada e em São Paulo, a quinta. A TV Paulista, comprada pelo dr. Roberto em 1968, era chamada divertidamente de pinico porque só tinha coisa ruim lá dentro.

Folha - A Globo viraria líder sem o acordo com o grupo Time-Life?

Boni -O acordo com o Time-Life tem uma importância muito grande na vida da TV Globo, mas acho que o mais importante é a saída do Time-Life. Se o Time-Life não tivesse saído, a TV Globo não seria o que é hoje.

Folha - Por quê?

Boni - O Time-Life tinha feito um acordo de assistência técnica com a TV Globo. O Time-Life investiu naquilo que a lei permitia, que eram os imóveis, e a TV Globo investiu nos equipamentos. O aluguel dos imóveis representava uma retirada da participação do Time-Life na sociedade. O Time-Life estava inteiramente insatisfeito com os primeiros resultados obtidos pela TV Globo. Nós encontramos a torneirinha do Time-Life fechada e o dr. Roberto com seus recursos exauridos _ele havia penhorado até os imóveis para fazer a TV. Então, nós tivemos que buscar dinheiro no mercado publicitário. Em 1970, nós conseguimos, com o dinheiro do faturamento da própria TV, comprar a parte do Time-Life. Custou US$ 3,85 milhões. O Wallach, representante do Time-Life, percebeu que, enquanto estivéssemos atrelados ao americanos, não íamos ter uma vida realmente independente. A história da TV Globo seria outra se o Joe Wallach não tivesse comprado a parte do Time-Life.

Folha - Vocês aprenderam algo com os técnicos do Time-Life?

Boni - Não. O que os técnicos do Time-Life sabiam não se aplicava ao Brasil nem aos Estados Unidos, tanto que eles quebraram lá. Time fracassou em todos os lugares do mundo onde tentou entrar na televisão. Só com o advento da televisão por assinatura é que a Time montou uma empresa extraordinária com a Warner, a Time-Warner. Nós aprendemos uma coisa importante com o Wallach, do Time-Life: o hábito da organização e do planejamento.

Folha - Como a Globo derrotou a Tupi, a Record e a Excelsior nos anos 60? Não houve uma certa apelação ao colocar no ar programas popularescos como os de Dercy Gonçalves e Silvio Santos?

Boni - Quando chegamos na Globo, a Dercy já estava lá, mas ela foi muito importante na conquista da audiência. Ela tomou conta do domingo, primeiro no Rio e depois em São Paulo. Foi um produto efetivo na conquista de audiência. Quando chegamos, começamos a mexer no programa da Dercy. Colocamos entrevistas, reportagem policial. Usamos a Dercy como apresentadora, não como atriz.

Folha - Silvio Santos já era um fenômeno de audiência?

Boni - Já. O Silvio Santos e a Dercy Gonçalves foram a base para o crescimento da audiência porque você tinha o que nós chamamos de alto-falante. Tínhamos onde fazer propaganda dos nossos produtos naqueles programas que tinham audiência. Se você não tem nada de audiência na emissora é muito difícil você divulgar o resto. Mas o que consolidou a TV Globo foi o processo de novelas.

Folha - Havia muita baixaria na Globo no fim dos anos 60?

Boni - Tinha. Eu assisti um episódio em que o produtor do Homem do Sapato Branco (Jacinto Figueira Júnior) deu uma cabeçada em um reclamante e disse: “Foi teu inimigo que te cabeceou”. E não era, era o sujeito da produção do programa... Era o Ratinho da época. Nesse dia, resolvi acabar com o programa.

Folha - A baixaria acabou por uma necessidade publicitária?

Boni - Nós tínhamos de acabar com isso porque o nosso projeto era fazer um veículo de publicidade. Nós sabíamos que tínhamos de disputar mercados qualificados de audiência e ter uma rede de TV. A TV Globo é produto de publicitários. Eu, Walter Clark e o (João Carlos) Magaldi éramos publicitários. Imaginávamos que tínhamos uma responsabilidade com o mercado publicitário de arranjar um veículo onde se pudesse exibir anúncios decentemente. Tínhamos uma visão de que a TV tinha de ser, ao mesmo tempo, um veículo de informação e de entretenimento de qualidade.

Folha - Como as novelas ajudaram a Globo a se tornar a maior emissora do país?

Boni - Quando o Walter (Clark) chegou, em 1966, produziu “Eu Compro Essa Mulher”, uma novela da Glória Magadan. Foi um sucesso no Rio. Conseguiu um primeiro lugar naquele horário, o que indicava que novela era um produto eficiente para a conquista de audiência. O que nós fizemos, mais tarde, foi trazer a Janete Clair e o Dias Gomes e tentar aproximar a novela da realidade brasileira, coisa que o Cassiano (Gabus Mendes) já havia feito com “Beto Rockfeller”, na Tupi. Nós achávamos que “Beto Rockfeller” tinha o mérito do texto, mas não tinha qualidade de produção. Aliamos, então, um texto popular, mas de boa qualidade, a uma produção que imaginávamos o mais próximo possível do cinema. Introduzimos coisas como externas, planejamento e cidade cenográfica.

Folha - Por que o brasileiro gosta tanto de novela?

Boni - Tem uma antiteoria do Nelson Rodrigues. Pedi a ele, quando estava na TV Rio, que escrevesse uma novela, e o Nelson Rodrigues disse: “Eu não posso escrever uma novela, porque quando escrevo alguma coisa eu termino o meu produto, eu conto tudo, e a novela não é assim”. Ele disse: “A novela é aquilo que o espectador escreve entre o final do último capítulo que ele viu e o capítulo que verá no dia seguinte. Uma novela não dura meia, dura 24 horas. O espectador se envolve naquilo de tal maneira que ele é co-autor”. O Nelson foi um fracasso nas novelas que escreveu para a TV Rio, “A Morta no Espelho” e “O Homem Proibido”. Mas essa antiteoria nos levou a usar pesquisas de motivação e perfil de audiência para saber como o público estava escrevendo a novela.

Folha- Qual foi o ápice da TV brasileira nesses 50 anos?

Boni - A criação do “Jornal Nacional” foi importante porque conseguimos falar para o país todo ao vivo. Outro momento importante foi quando começamos a produzir séries diferentes das novelas, como “Malu Mulher”, “Carga Pesada” e “Plantão de Polícia”. E há as minisséries, que trouxeram a literatura para a TV. Sem que tenha sido o ápice, consideramos que a abertura e a consolidação de um mercado de trabalho brasileiro foi o resultado mais importante que conseguimos.

Folha - E o momento mais constrangedor?

Boni - Meu maior constrangimento foi não ter participado de maneira mais ativa das Diretas-Já.

Folha - A Globo é acusada de ter sido porta-voz do regime militar. Havia interferência dos militares na programação ou a Globo agia por conta própria?

Boni - A Globo jamais agiu por conta própria. Havia pressão contínua sobre o dr. Roberto, porque TV era concessão, e havia pressão dos censores em relação a mim e ao Armando (Nogueira) no jornalismo. A Globo não foi favorecida pelo regime militar. As outras emissoras recebiam 20%, 30% ou 40% do faturamento publicitário do governo. Na Globo, as verbas do governo não passavam de 7%. Foi um período duro.

Folha - Se a Globo não tinha essa ligação, por que a imagem dela é tão associada ao regime militar?

Boni - Porque é difícil explicar a cada espectador isso que eu estou explicando. Ela foi extremamente usada devido à sua audiência, mas o dr. Roberto resistia.

Folha - Quais foram as intervenções mais graves da censura?

Boni - Em entretenimento, foi a censura de “Roque Santeiro”. A novela foi censurada no dia da estréia, com 30 capítulos prontos e outros 20 entregues à censura com dois meses de antecedência.

Folha - E no jornalismo?

Boni - A ditadura chegou a ter um representante na Globo, com espaço para fazer uma espécie de uma ordem do dia dentro da TV. Foi o Edgardo Ericsen, um coronel da reserva. O programa chamava-se “Ordem do Dia”.

Folha - Qual a notícia mais importante que foi censurada?

Boni - Foi a campanha das Diretas-Já. Conseguimos obter o direito de transmitir os comícios sem transmitir os discursos. E comício sem discurso não existe.

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