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Esporte

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Antonio Prata

ESTRANHOS NO NINHO

Função esporte

O jogo é narrativa tão forte que toda ficção em cima dele soa falsa. É um filme ao vivo

Durante o hino, vejo uma bolinha de futebol no meio do controle remoto e acho que estou delirando: será efeito do nervosismo diante do mata-mata ou o primeiro sintoma do derretimento do meu cérebro após mais de 50 horas de jogos em apenas 17 dias? Curioso, aperto a bolinha: "Você deseja acionar a função esporte?".

Fiat lux! A grama ganha um verde quase fosforescente, o amarelo canarinho parece marca-texto, o vermelho dos chilenos chega a irritar os olhos. Aperto "voltar" para comparar com a imagem anterior e descubro que, além da "função esporte", a TV oferece outras opções, como a "função cinema". Clico. De um meio-dia primaveril, minha tela passa a entardecer outonal, sépia, como se Neymar e Alexis Sánchez fossem personagens de "O Poderoso Chefão 2". Para evitar pensar no jogo, talvez, fico indo e voltando de "esporte" para "cinema" e matutando sobre o significado das duas formatações.

Ao clarear e turbinar as cores, a "função esporte" nos aproxima do espetáculo, como se esfregasse o presente em nossa fuça, afirmando: isso-está-acontecendo-agora. Grande parte da graça do esporte, aliás, é esta: haja o que houver, a coisa será decidida naquele intervalo predeterminado de tempo. Ao contrário da vida fora dos gramados, em que tudo se acelera e se prolonga de acordo com forças intangíveis: casamentos se esfacelam aos pouquinhos, carreiras deslancham num instante, recessões se arrastam por anos, guerras estouram de repente. O tom cromático-lisérgico da "função esporte" parece querer nos convencer de que aquilo é mais real do que a vida --essa bagunça.

Se a "função esporte" aproxima com luz, a "função cinema" distancia com sombra. Cinema é o contrário do esporte. É um jogo de cartas marcadas. É algo que não só não está acontecendo agora: nunca aconteceu nem acontecerá. Paradoxalmente, para que embarquemos na ilusão, a "função cinema" afasta ainda mais o filme da realidade, cobrindo a tela com um etéreo filtro marronzinho que sugere passado, reino distante. A penumbra sépia funciona como um dimmer da razão, abaixando-a até que aceitemos embarcar no que sabemos ser uma mentira deslavada.

No metrô, após Uruguai x Inglaterra, o jornalista Maurício Barros me contava de um debate do qual participou, com Ugo Giorgetti e Tales Ab'Saber, em que se discutiu por que o cinema e a literatura brasileiros falam tão pouco sobre o futebol. Uma das hipóteses era a de que o jogo é uma narrativa tão forte que toda ficção em cima dele soa falsa. Uma partida é um filme ao vivo, cujo enredo vai sendo escrito em tempo real. Essa é a graça da coisa: ainda mais quando os 22 roteiristas decidem deixar para o último pênalti o clímax e o desesperado happy end.


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