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Crítica - Música erudita
Concertgebouw faz exibição impecável na Sala São Paulo
Concerto na última segunda-feira teve um daqueles momentos que se incorporam para sempre à memória
NADA SE COMPARA AO ESPETÁCULO AO VIVO, POR MELHORES QUE SEJAM AS GRAVAÇÕES E OS SISTEMAS DE REPRODUÇÃO
DO CRÍTICO DA FOLHAApenas a música. Não o fato de ela apontar para uma síntese com outras formas de beleza, ou como alívio das tensões diárias, nem mesmo como projeto para uma sociedade melhor: o concerto da Orquestra do Concertgebouw de Amsterdã, na última segunda na Sala São Paulo, mostra que a música pode ser, antes de tudo, um bem em si.
Não que o grupo --que em 125 anos de existência teve apenas seis regentes titulares-- se furte aos desafios de uma orquestra moderna, mas tudo o mais se torna pequeno diante das formas sonoras em movimento projetadas sobre a plateia.
E por melhores que sejam as gravações e os sistemas de reprodução atualmente, nada, nesse caso, se compara ao espetáculo ao vivo, com o espaço generoso transformando o tempo da vida.
Nascido na Letônia e criado em São Petersburgo, Mariss Jansons, 70, é regente titular da Concertgebouw desde 2004. Seus antecessores no cargo foram o italiano Riccardo Chailly e o holandês Bernard Haitink.
O repertório apresentado na segunda-feira consistiu em uma abertura do holandês Johan Wagenaar (1862-1941), seguida pela "Rapsódia sobre um Tema de Paganini", de Sergei Rachmaninov (1873-1943) e a "Sinfonia n. 5" de Piotr Ilitch Tchaikovsky (1840-1893).
Inspirada em "A Megera Domada", de Shakespeare (1564-1616), a peça de Wagenaar --um contemporâneo de Claude Debussy (1862-1918)-- é bastante convencional, mas a sua função era introduzir no ambiente o som cheio e brilhante da orquestra.
Seguiu-se a "Rapsódia", obra escrita em forma de variações para piano e orquestra sobre o "Capricho n. 24" do violinista Niccolò Paganini (1782-1840). Nascido na Sibéria em 1975, Denis Matsuev foi o solista convidado.
A peça é um desafio para a grande maioria dos pianistas, mas não para Denis Matsuev, que a toca com facilidade e domínio pleno.
Eliminado o desafio, curiosamente, a obra se sustenta mais, como se Rachmaninov tivesse herdado a placidez de Robert Schumann (1810-1856).
REGÊNCIA
As mãos de Jansons não parecem refletir a atividade de hemisférios cerebrais distintos. Elas conduzem a orquestra harmonicamente no espaço, o que dá a impressão que o som se forma no centro, em seu peito.
Na sinfonia de Tchaikovsky o som era grande e compacto, inteiro, sem distinções de naipes, e ocupava cada centímetro da sala sem rigidez, flexível em seu devir.
O ponto culminante do concerto talvez tenha sido o tutti final do segundo movimento, um daqueles momentos que se incorporam para sempre à memória do vivido.