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Marcelo Coelho

Gregorio Duvivier

Com a publicação de 'Ligue os Pontos', surge um poeta de primeira ordem no horizonte

Tirar poesia do cotidiano não é coisa tão rara assim. Afinal, ninguém mais se propõe a versejar sobre os deuses do Olimpo, os heróis da pátria ou as odaliscas do Oriente. Fala-se mais do gatinho de casa que dos colibris da Flórida, mais da casca de um pão que dos vinhos de Agrigento, mais do bar da esquina que das escadarias de Halicarnasso.

O problema, muitas vezes, não é que o cotidiano seja esquecido. É que ele se torna abstrato. O poeta escreve "pão", "gato", "rua", "esquina", "botequim" --e se dá por satisfeito.

Outra coisa, a meu ver, é recuperar o que existe de realmente cotidiano, de trivial, de pouco nobre, de passageiro, em palavras desse tipo. Se, em vez de "gato", dissermos "gato amarelo" (o exemplo é de Roland Barthes, falando sobre Chateaubriand), a coisa melhora muito.

Se, em vez de "pão", dissermos "pão de centeio", também esse efeito de despretensão será reforçado. Mas é possível ir mais longe; em vez de "pão de centeio", por que não escrever "Wickbold" de uma vez?

É o que faz Gregorio Duvivier em seu livro "Ligue os Pontos "" Poemas de Amor e Big Bang" (Companhia das Letras). Miojo, revistinhas do Cascão, nuggets, rua Mena Barreto, Ford Ka, todo tipo de marca e produto pode entrar nesses versos de Duvivier, como nota o cronista Antonio Prata, também colega aqui da Folha.

Tudo poderia ser, entretanto, simplesmente uma poesia engraçadinha, documental e pop. Mas "Ligue os Pontos" vai muito além disso.

Experiências do dia a dia muitas vezes são registradas no papel sem maior elaboração, como se o trabalho do poeta fosse apenas anotar qualquer coisa em versos curtinhos e seguir adiante.

Tipo: "Oi/ como vai/ me dá um chopps/ e dois pastel". Pronto, o poema está feito. Duvivier não cai nessa armadilha oswaldiana; seu cotidiano, e sua poesia, estão mais próximos de Manuel Bandeira que de Oswald de Andrade.

O segredo está, creio, em manter o texto sob tensão. O registro verbal instantâneo, a referência ao Ford Ka, não funcionam sozinhos. Se o objeto comum não se ilumina, não irrompe de algum lugar desconhecido, a poesia se empobrece.

Não vou contar como surge o Ford Ka num dos mais belos poemas de Duvivier; nem de que modo o pão da Wickbold aparece diante de seus olhos. Basta dizer que não estão ali à toa. Vêm carregados de toda a força poética que, ao longo dos versos anteriores, estava sendo preparada --como quem leva uma pedra até bem alto de um morro e, só no fim, deixa que despenque.

Para isso, o poeta usa de vários procedimentos. Destaco dois. O primeiro poderia ser chamado de "metáfora oculta". Duvivier é mestre em criar imagens verbais muito precisas. Assim, a avenida Niemeyer, no Rio de Janeiro, se esgueira entre o mar e a montanha "como o Chile", e a baía da Guanabara "é uma sopa de óleo diesel".

Mas essas metáforas são apenas uma parte do jogo. Inserem-se em poemas que são comparações mais amplas, entre coisas escondidas.

O melhor exemplo está num poema sobre a necessidade de apagar a luz às seis da tarde, no mês de outubro, "sobretudo nos bairros sem praia".

Ao longo de 20 versos, tudo nos leva a crer que se trata de algo amedrontador, que o assunto do poema são bandidos, milícias, traficantes; mas nada se diz a esse respeito, e menos ainda a respeito do que realmente está sendo descrito, e que se revelará sem dificuldade numa segunda leitura.

É a metáfora oculta, a metáfora "verdadeira" debaixo da metáfora "aparente". Artista de primeira ordem, Duvivier não se torna chato nem hermético por causa disso.

O segundo procedimento é ainda mais refinado, acho, mas novamente não resulta em formalismo e "rigor" ao gosto acadêmico.

Quando veio o modernismo, o público se chocava com versos irregulares e sem rima. Esse efeito de novidade não existe mais. Duvivier segue, nesse ponto, a lição do poeta Armando Freitas Filho. Os seus versos são todos do mesmo tamanho, só que a "música" deles não acompanha o metro e o compasso das sílabas.

As pausas entre uma linha e outra parecem interromper o fluxo da frase; as repetições e as rimas, ou "quase rimas", como que pulam de surpresa no meio dos versos. Palavras aparentemente casuais, como "volta", "Urca", "mate", parecem estar botando a cabeça para fora da sintaxe, mudando de sentido e cortando a respiração do leitor.

Daí, sem dúvida, a tensão que se acumula durante o poema, e se libera no final. É o momento em que o leitor finalmente "liga os pontos" do que estava diante de seus olhos. Descobre com isso, também, uma nova e intensa estrela no horizonte da poesia brasileira.


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