Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

Ilustrada

  • Tamanho da Letra  
  • Comunicar Erros  
  • Imprimir  

Crítica ensaios

Não ficção de Herta Müller revela a origem de sua ficção

MARCELO BACKES ESPECIAL PARA A FOLHA

A cada meio ano, pelo menos, o Brasil ganha uma nova obra de Herta Müller, Nobel de Literatura em 2009. Dessa vez é a coletânea de ensaios "O Rei se Inclina e Mata". E a autora continua falando da Securitate, a polícia secreta de Ceausescu.

Os nove textos do livro lembram os de "Sempre a Mesma Neve e Sempre o Mesmo Tio" e abrem as portas da oficina criativa da autora, mostrando o parentesco íntimo entre sua ficção e seu ensaio.

Herta cita suas obras, referencia-as, fala da escola do silêncio, de seu assim chamado olhar estranho, da formação melancólica que dominou sua vida desde a infância provinciana na Romênia: as baratas eram chamadas de russos, e o tempo era medido nos trens que passavam.

Há uma bela seleção de momentos importantes da literatura universal, como a passagem do escritor tcheco Péter Nádas. Na Primavera de Praga, o povo cuspiu tanto nos para-brisas dos carros de soldados húngaros, chamados para abafar a revolta, que os limpadores deixaram de funcionar, enquanto os soldados tremiam e choravam por trás dos vidros.

Herta corteja a autobiografia, esboçando, em forma de colagem, uma vida entre a aldeia e a ditadura.

O namorado morto pela polícia secreta, o pai que venceu, bebendo, os traumas do passado na SS e a mãe que venceu, trabalhando, os do campo de trabalhos forçados na URSS; sintomaticamente, Herta recebeu o nome em homenagem à melhor amiga da mãe, que morreu de fome no mesmo campo.

ILHA ASSOMBRADA

A Romênia continua sendo vista como a ilha assombrada da qual a autora sempre quis fugir, quando a espionagem ainda envolvia o corpo a corpo; hoje é universal e feita de longe, mais covarde e hipócrita, de certo modo, ainda que aparentemente menos ameaçadora.

A língua é analisada como instrumento de opressão, o silêncio como modo de resistir, até o instante em que Herta começa a escrever.

A distância entre as palavras e as coisas e a necessidade de renomear tudo para alcançar novamente o sentido ocupam o centro das questões. A qualidade de um texto é medida pela capacidade de mergulhar na confusão de uma cabeça humana.

Em que pesem momentos de pieguice, Herta vai fundo na análise da vulnerabilidade humana e chafurda no medo eterno da criança, que ganha fundamento na Securitate ao se tornar adulta.

A vida é a espera da morte, ou da doença que vem antes, se o destino for natural; do assassinato, ou da tortura que o precede, se o destino for estatal. E, mesmo depois da fuga, não se consegue chegar. A distância espacial não cura as feridas. Talvez porque elas já marcassem a alma antes mesmo da Securitate.


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página