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Crítica - Romance

'A Condessa de Picaçurova' é novela engraçada e perversa

Livro se aproxima de delírio cômico-escatológico com base nos clássicos

HÁ NELE TANTO HUMOR E EXUBERÂNCIA QUANTO SECURA E CRUEZA, EVIDENTE NO EMBATE ENTRE AS TRÊS FÊMEAS PRINCIPAIS

ALCIR PÉCORA ESPECIAL PARA A FOLHA

Devo a João Silvério Trevisan a primeira indicação de "A Condessa de Picaçurova", vencedor na categoria melhor romance da 17ª edição do Prêmio Nascente da USP.

Antônio Salvador, que consta como nome do autor da obra, é pseudônimo, mas a editora garante que se trata de escritor nascido em Natal, em 1980.

Como apresentação do livro poderia dizer que se trata de uma variante de novela picaresca, na qual a protagonista, com ares de Macunaíma, é substituída por uma macaca de nome Benguela, a qual, de moradora de um orabutã (ou pau-brasil) bichado, num vilarejo perdido do Grão-Pará, torna-se a despótica condessa da nova capital da capitania.

O breve enredo talvez dê a perceber que a história se passa supostamente no período colonial; que seu espaço está no âmbito de toda a vasta região que abrange do Nordeste à Amazônia, mas que os anacronismos com o mundo contemporâneo e globalizado são parte da graça da narração.

Acrescente-se o gosto do narrador pelo léxico colorido e provérbios regionais, bem como pelos "causos", à maneira dos recolhidos por Câmara Cascudo, com destaque para os de João Monteiro, conterrâneo do autor e citado explicitamente por ele.

Mas o livro também lança mão da matriz machadiana, evidente na intromissão de comentários metalinguísticos sobre os capítulos; no desmonte de hábitos de leitura que atinge ironicamente todos que o leem; na suspeita sobre a fidedignidade, a autoria e a autoridade do narrador, de modo que não se pode estar certo do que é dito, de quem o disse e ainda com que (má) intenção o diz.

Um capítulo até transcreve certo "Ensaio sobre a Auto-Domesticação", espécie de resposta ao "Humanitismo", de Quincas Borba, propondo uma inversão simiesca da teoria evolucionista.

E caberia mencionar a presença de Guimarães Rosa nesse cadinho, que fica clara quando a narração é entregue à murmuração popular, à licença do léxico onomatopaico, à enumeração caótica, à amplificação das cenas de combate.

EMBATE ENTRE FÊMEAS

Mas seria falso pensar que "A Condessa de Picaçurova" apenas se encosta nos grandes. É mais justo dizer que, com base neles, sabe fabricar as armas próprias com que debate questões como: que escrita pode dar forma à suspeita de que todas as versões são corruptas ou estúpidas desde o nascimento?

O que se pode contar quando já nenhuma malandragem suaviza o anúncio apocalíptico que parece inscrito na precariedade da vida?

Por isso mesmo, a novela se aproxima de um delírio cômico-escatológico.

Há nele tanto humor e exuberância, linguisticamente manifesta, quanto secura e crueza, evidente no embate entre as três fêmeas principais: a condessa símia, a mendiga Erinéa (cujo nome já significa sua fúria de sobrevivente) e a Morte, com eficácia assassina de secretária-executiva.

Por aí já se vê, o livro é engraçado, inteligente e anarquicamente perverso. A ideia é rir com todo o gosto da língua aplicada à política da terra arrasada.


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