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Marcelo Coelho

Duas felicidades

Imagens do fotógrafo Jacques Henri Lartigue mostram os perigos do momento que passa

De Santos Dumont, o normal seria ver fotos num aeroplano, ou sentado à mesa de trabalho. Mas nunca tinha visto imagens do pai da aviação... dirigindo um carro de corrida, ou --pior ainda-- praticando equitação num dos parques mais chiques de Paris.

As duas fotografias aparecem numa exposição do Instituto Moreira Salles, dedicada a Jacques Henri Lartigue (1894-1986). Chama-se "A Vida em Movimento", e não por acaso Santos Dumont surge como um personagem fugaz nas incontáveis fotografias que Lartigue tirou ao longo de sua vida quase centenária.

Os primeiros aviões, os primeiros carros de corrida, os campeonatos de balonismo, muitas festividades do turfe, jogos de tênis e tombos de bicicleta fazem parte do cotidiano encantado desse filho da alta burguesia francesa.

O pai, engenheiro e diretor da Companhia Franco-Argelina de Estradas de Ferro, era ele próprio entusiasta do automobilismo. Deu a Lartigue sua primeira câmera fotográfica em 1902, quando o menino tinha oito anos.

O culto da velocidade, dos aviões e dos esportes é bem típico, como se sabe, da estética modernista --em especial antes da Primeira Guerra, momento em que se percebeu o potencial assassino de tantas invenções técnicas.

Apesar de sentir a perda de vários amigos no morticínio de 1914-1918, Lartigue não parece guardar, em suas fotografias, nenhum vestígio das grandes tragédias do seu século.

A Segunda Guerra o encontra na Côte d'Azur, clicando os grandes hotéis brancos entre palmeiras, assentados nas praias de cascalho. No castelo da família, todos organizam palhaçadas na piscina.

Futilidades, sem dúvida. Um dia, Lartigue passou uma boa meia hora tentando fazer seu gatinho dar o salto justo para ser fotografado em pleno voo. Pendurou uma bola de papel na linha de uma vara de pesca, de modo a atrair o bichano.

A foto, de 1918, associa-se na exposição à grande quantidade de pessoas também surpreendidas em pleno ar. Num grupo que joga bola na praia, alguém se estica para realizar uma defesa acrobática; um primo gordo se imobiliza no papel de prata logo depois de largar o trampolim; mulheres adultas brincam de pula-sela.

Na foto que com justiça foi escolhida para o cartaz da exposição, um menino sorridente e descabelado, fora de foco devido à rapidez do movimento, se arremessa sobre um grande castelo de areia, rodeado de um daqueles fossos com que se espera manter domada a água do mar.

A praia, como tantas do litoral europeu, é longa, triste, chuvosa. O menino se destaca contra a água prateada e calma, num lampejo escuro de ideograma japonês.

Traduzir o ideograma não é difícil: para Lartigue, é a felicidade. Vale a pena prestar atenção, contudo, na parte inferior de cada foto. Ou temos uma areia úmida, quase negra, que só de olhar nos enregela, ou se trata da água da piscina, onde todos se divertem sem sentir o quanto é espessa, sombria e sem fundo.

Eram piscinas antes de se descobrir, creio, o uso do cloro. Não há nada de californiano, de solar, de leve nesses verões franceses.

Os personagens de Lartigue estão sempre sobrevoando a realidade --mas ele deixa pressentir que esse voo é curtíssimo, dura apenas o tempo de um clique fotográfico, e faz parte do programa, logo em seguida, estatelar-se no chão.

Bem diversas, sem dúvida, são as imagens de felicidade feitas por Cartier-Bresson (1908-2004). Penso nas fotos que ele tirou celebrando, nos anos 1930, a recente conquista das férias coletivas para os trabalhadores, no breve governo de esquerda da Frente Popular.

Não há sensação de fugacidade ali; o inigualável senso de Cartier-Bresson para a composição espacial parece acomodar grupos de pessoas, objetos, paisagem e gestos num equilíbrio sem fim.

Sabemos que as harmonias de Cartier-Bresson também foram resultado do acaso; são precárias, irão desfazer-se logo depois de tirada a foto. Lartigue não parece pensar, entretanto, em simetria: tudo é uma sucessão de instantes, a reencenar sempre --mas nenhum será abençoado pela perfeição.

Duas ideias de felicidade, talvez. A de Lartigue feita de excitabilidade insaciável, de explosões de energia, de desafio às leis da gravidade e da vida. A de Cartier-Bresson mais feita de estados que de instantes, de pacificação consentida e de aceitação do tempo.

Nenhum dos dois haverá de estar errado, apesar de visões tão distintas a respeito do assunto. Viveram, ambos, quase até os cem anos --e o que a vida pode ter de negativo eles deixaram, sem dúvida, no estúdio de revelação.


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