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Gregorio Duvivier

Meus pais

Quando se abraçavam, eu me aconchegava entre suas pernas e ia para longe de todos os perigos do mundo

O amor dos meus pais era poderoso --para mim, pelo menos, que era uma criança muito medrosa. Tinha medo de médico, de palhaço, de qualquer pessoa com muita maquiagem --Bozo, Vovó Mafalda, Hebe.

Quando meus pais se abraçavam, eu me aconchegava entre suas pernas e ia para longe de todos os perigos do mundo, de toda essa gente maquiada demais.

Gostava de viajar com eles, quando eles faziam shows pelo Brasil. Sentava na primeira fila e berrava de orgulho no final. Queria saber assobiar com os dedos, só pra fazer mais barulho. Sabia o show de cor, especialmente uma parte em que eles contavam como tinham se conhecido.

Meu pai morava na rua Rumania, em Laranjeiras, quando minha mãe se mudou pra casinha da frente. Meu pai estudava sax. Minha mãe estudava canto. Começaram a fazer duetos --sem nunca terem se visto. Um dia, meu pai tomou coragem e atravessou a rua. Bateu na porta dela e deu no que deu. Tiveram três filhos. Gravaram dois discos. Construíram uma outra casa pra caberem os filhos e os discos.

Fomos muito felizes nessa casa. Minha mãe dava festas e jantares e saraus que enchiam a casa de música e alegria. Meu pai fez um estúdio no porão onde minha irmã e eu podíamos dormir no carpete, ouvindo ele compor. A piscina de dez metros quadrados tinha as dimensões do oceano Atlântico. Criamos no jardim muitos cachorros, alguns gatos, uma cabra, uma figueira, um limoeiro e um manacá muito cheiroso.

Um dia, estava dormindo no quarto e acordei com um quebra-quebra. Subi até a cozinha achando que era assalto. Os dois choravam, envergonhados. Foi a primeira vez que eu vi eles brigando. Meu pai desceu comigo e dormiu na minha cama. No meio da noite acho que ouvi ele chorar.

Não demorou pra que meu pai saísse de casa. Separados, tentaram ser amigos por muito tempo, e foram. Até que começaram a brigar pela casa que construíram juntos --quem construiu mais, quem construiu menos. Não sei quem está certo. Mas aprendi que as brigas de casal pertencem ao universo quântico. Duas pessoas falando coisas opostas podem estar igualmente certas --e frequentemente estão.

Acho que eles não vão gostar desta crônica. Vão dizer, com razão, que eu estou expondo uma questão de foro íntimo. Mas eu também não gostaria de participar das questões íntimas deles --então divido com vocês. Tudo o que eu queria era poder guardá-los no palco, tocando juntos --infalíveis.


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