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Crítica - Biografia

Estudo sobre padre Cícero alia sensibilidade antropológica e uso preciso de documentos

FABIANO MAISONNAVE DE SÃO PAULO

Os leitores brasileiros têm uma nova chance de conhecer um dos estudos mais importantes sobre o Brasil da virada do século: acaba de ser reeditado "Milagre em Joaseiro", do historiador norte-americano Ralph Della Cava.

Publicado pela primeira vez em 1970, trata-se de uma pesquisa pioneira sobre os acontecimentos em torno do padre Cícero na região da atual Juazeiro do Norte (CE), durante a virada do século 19 para o 20.

Praticamente ignorado no Sul, o padre cearense Cícero Romão Batista (1844-1934) até hoje gera controvérsia no Nordeste e na Igreja Católica. Basta lembrar que ainda tramita no Vaticano um processo de reabilitação do líder religioso, que morreu excomungado.

A radicalização em torno de sua figura é resultado de uma longa trajetória marcada por uma sucessão de controvérsias, com predominância religiosa na primeira fase e logo por sua inserção na política.

A primeira, que dá título ao livro, se refere ao milagre que teria se manifestado pela primeira vez em 1889, quando a beata Maria de Araújo tingiu de sangue a hóstia branca que recebera de Cícero.

O fenômeno passou a se repetir com frequência, atraindo romeiros de todo o Nordeste --e a ira do bispo do Ceará, convencido por um padre europeu residente em Fortaleza de que "Nosso Senhor não deixa a França para obrar milagres no Brasil".

Foi o início de uma relação tumultuada com a Igreja Católica que o atormentaria por décadas, sem conciliar a fidelidade ao papa com a devoção de uma massa de devotos imersos numa religiosidade popular que horrorizava a cúpula eclesiástica.

A fase mais política do padre ocorre a partir da década de 1910. É em torno dele que se fez a campanha bem-sucedida em favor da emancipação de Juazeiro do Norte, em 1911, quando se torna o primeiro prefeito da cidade.

Começa aí uma sucessão de eventos que o leva a vice-presidente do Ceará e a ser eleito deputado federal. Torna-se, assim, "o coronel mais poderoso da história política do Nordeste brasileiro", segundo Della Cava.

O tempo de vida do padre Cícero baliza o livro, mas, à diferença da minuciosa biografia de Lira Neto publicada 2009, a preocupação maior do autor foi mostrar as vinculações políticas do vale do Cariri com a política nacional e a economia mundial, sem descuidar do contexto regional e da história eclesiástica.

Della Cava vai assim definindo o padre Cícero na sua relação com homens e instituições da época: fiel à igreja que o rechaça, adversário de movimentos mais radicais, como o tenentismo, interessado no desenvolvimento econômico da região e ambíguo com o banditismo de cangaceiros como Lampião.

"De forma quase inconsciente, o padre tornara-se um agente-chave no processo de modernização' do esquecido Nordeste, embora de inspiração conservadora, capitalista e paternalista", escreve.

Apesar da trama complexa, a leitura do livro flui bem, graças ao uso cuidadoso dos documentos aliado a uma sutil sensibilidade antropológica.

A feliz combinação é resultado de sua pesquisa de campo. Della Cava ficou no Brasil de setembro de 1963 a novembro de 1964. Em parte desse período, o historiador, que de início não conhecia ninguém no Ceará, passou meses com a família em casas religiosas em Juazeiro do Norte, experiência relatada em apêndice inédito do autor.

Dada a pouca probabilidade de um historiador americano se meter no sertão do Ceará nos anos 1960 e ainda produzir uma obra que permanece de pé há meio século, não é exagero dizer que "Joaseiro" produziu dois milagres.


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