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Michel Laub

Inteligência entre aspas

Para o frasista, a estética pode ser a melhor tradução da ética; para o romancista, ela pode ser um obstáculo

"Cara Jenevieve, estou tendo um caso com uma mulher mais velha (...). O sexo é fantástico e acho que estou apaixonado. Mas existe outra complicação séria, que é a seguinte: ela é a minha avó!"

Assim começa "Lionel Asbo - Estado da Inglaterra", mais recente romance de Martin Amis (Companhia das Letras, tradução de Rubens Figueiredo). O personagem-título, um delinquente vocacional que usa dois pitbulls como "ferramentas de trabalho", ganha na loteria e é "tragado pela primeira página".

Sua fama mudará também o destino do sobrinho, autor da carta reproduzida no primeiro parágrafo. A avó é a mãe de Lionel. São 352 páginas em que Amis reafirma a fé que professou numa entrevista antiga: a de sacrificar qualquer coisa por uma boa frase.

De fato, a coluna poderia continuar até o fim à base de citações. No bairro londrino fictício onde se passa a história, "nada --nem ninguém-- tinha mais de sessenta anos". Um lugar onde "tudo odiava tudo e, em troca, tudo também odiava tudo". Onde o ar era "uma névoa de saibro, a textura da gaze, com ciscos, pontos cegos, rugas, como cicatrizes de vacina".

Estamos diante do mais brilhante escritor inglês de sua geração, o mais cruel, o mais divertido. A questão é saber o que Amis sacrifica ao construir, em prosa quase monotonamente exuberante, cheia de referências, trocadilhos e sacadas de efeito, uma sátira aos tipos que fazem de "Lionel Asbo" um livro (outra entrevista, outras aspas) "sobre inteligência --como usá-la, como desperdiçá-la".

Talvez a resposta esteja justamente nessa declaração. O talento para criar frases, algo tão raro quanto admirável, não é incompatível com o talento para escrever um romance. Mas não se trata, óbvio, da mesma coisa.

O primeiro exige repertório, humor e capacidade de síntese, além de gosto pela generalização. Para o frasista, a estética pode ser a melhor tradução da ética. Sua tarefa é encontrar palavras para colorir com estilo uma ideia previamente definida, mesmo que o processo a torne mais rígida e simplória do que deveria ser.

Já o romancista trabalha com a dúvida, muitas vezes em busca de algo que não sabe bem o que é. Ele terá tempo para descobrir: são capítulos e capítulos tediosos pela frente, e não um ou dois parágrafos cintilantes. A estética pode ser um obstáculo aí, porque a elegância de um trecho pode atenuar as arestas e nuances de uma verdade. É preciso estar pronto, portanto, para abrir mão da beleza e da graça.

Nessa operação, que submete o autor a necessidades rasteiras de trama e personagens, com o objetivo de chegar ao impacto do conjunto, não se pode ter medo de soar burro. Como Amis jamais soou assim, um dos preços que paga é o de não conseguir se pôr no nível de suas pequenas criaturas, numa empatia que poderia ser transmitida ao leitor. Rimos de Lionel, nos espantamos com sua capacidade de ultraje e agressão, somos condescendentes ou o desprezamos, mas entendemos a sua essência?

Nada de errado em caso negativo, porque o "personagem de carne e osso" é só um clichê de certa narrativa convencional. Não existe superioridade a priori do chamado romance sério. A sátira se baseia em elementos diversos --caricatura, prerrogativa moral de mostrar a pequenez alheia-- para chegar a fins muitas vezes semelhantes.

O problema é que Amis não parece concordar. Ele nunca se conformou em ser autor de comédias anárquicas e gloriosas como "Money" e "A Informação". A maioria de seus livros busca também a solenidade dos grandes temas, o que os faz submergir --apesar dos trechos memoráveis-- em promessas não cumpridas: nazismo ("A Seta do Tempo"), gulag soviético ("Casa de Encontros"), ameaça nuclear ("Einstein's Monsters"), a metafísica do suicídio ("Trem Noturno").

Quanto a "Lionel Asbo", o que está em discussão não é se o livro é bom ou ruim. Tirando um ou outro trecho reiterativo, além do final morno, seria desonesto falar mal do que nos diverte a cada página.

O que dá é para confrontar a obra com o que declaradamente é o seu propósito. E aí, ao fazer a relação algo batida entre estupidez e cultura das celebridades, numa tentativa de radiografar nossa era triste, o nunca banal Martin Amis se destaca pouco da banalidade do seu objeto.


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