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Revista Serafina

No reino de Shakespeare

Nos 450 anos do maior dramaturgo da história, visitamos os seus domínios, que atraem bardólatras de todo o mundo. E apresenta a nova integrante do clã shakespeariano -que tem um pezinho no Brasil

ADRIANA KÜCHLER ENVIADA ESPECIAL A STRATFORD-UPON-AVON E LONDRES

Não há nada de podre em Stratford-upon-Avon. No dia 23 de abril, aniversário de seu cidadão mais ilustre, William Shakespeare, as manchetes do jornal local comunicavam duas coisas: a queima de fogos que aconteceria à noite para comemorar os 450 anos do maior dramaturgo da história e uma ação da polícia contra motoqueiros antissociais.

"Stratford é uma graça de cidade", diz Barbara Heliodora, crítica teatral, tradutora e maior especialista na obra do dramaturgo no Brasil. "Muito bonitinha, muito gostosa! Há as construções do tempo dele e os teatros, que são maravilhosos. A cada visita aprendo algo novo."

A duas horas de trem (160 km) de Londres, a cidadezinha de 26 mil habitantes (estima-se que em 1564 eram 2.000) pode ser descrita como uma ilha de Shakespeare cercada de Inglaterra por todos os lados. Serafina foi visitar o epicentro das comemorações do nascimento do filho de um luveiro, que escreveu "Hamlet", "Romeu e Julieta" e "Macbeth", e virou o maior escritor da língua inglesa, ícone da cultura mundial. Dentro de dois anos, chegam os 400 da morte do autor ""entre as duas datas, uma longa maratona de comemorações literário-teatrais pelo mundo.

Pelas ruas de Stratford, o clima é bucólico. Turistas e locais passeiam por entre as casas de estilo Tudor (com vigas de madeira aparente) sob uma quase constante garoa fina, que deixa um cheiro de chuva no ar. Há quem passe tardes alimentando os muitos gansos do rio Avon e outros que contornam as margens em bicicletas. Nenhum motoqueiro antissocial à vista.

Gostar ou não de Stratford vai depender do seu nível de bardolatria. Caso seja um admirador da vida e obra do escritor, há um encanto em cada detalhe. Do contrário, as ruas e comércio temáticos podem sugerir uma Shakespearelândia. Nessa versão literária da Disney, o autor assume o lugar do camundongo Mickey ""em lojinhas de suvenir, há Shakespeare de pelúcia, Shakespeare em versão pato de banheira, Shakespeare-cerveja...

Os que se identificarem com a primeira opção vão se deleitar em conhecer as várias casas ligadas ao poeta: aquela em que nasceu e cresceu, a de sua vó, a de sua mulher, o local onde teria vivido os últimos anos e a igreja onde está enterrado.

Mas há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa filosofia. Até onde se sabe, Shakespeare não escreveu um diário. E biografias literárias como as conhecemos não existiam na época (surgiriam apenas a partir de 1791, com "A Vida de Samuel Johnson"). Ou seja, além das tragédias, comédias, peças históricas e sonetos que criou, pouco sobrou para contar a história do próprio autor.

Segundo Edmond Malone (1741-1812), um dos grandes estudiosos do dramaturgo, "tudo o que se sabe com algum grau de certeza é que ele nasceu em Stratford-upon-Avon, foi casado e teve filhos por lá, foi para Londres, onde começou a escrever seus poemas e peças, voltou a Stratford, escreveu seu testamento, morreu e foi sepultado".

Nem o número de peças é unanimidade: varia de 37 (o chamado "cânone") a 40 e tantas ""já que a cada ano se atribuem novas obras ao autor. Há, ainda, quem defenda que Shakespeare não escreveu peça alguma. A discussão, que se estende desde o século 18 e que atraiu nomes como Freud e Mark Twain, é baseada principalmente na tese de que, não sendo rico nem nobre, um classe média como William não teria como conhecer a variedade de universos e temas que disseca em seus textos.

Conformando-se com as certezas e aceitando as incertezas, a visita às casas vira diversão. O testamento é uma das fontes principais de fantasias entre os locais. Shakespeare deixou de herança para a mulher, Anne Hathaway, apenas sua "segunda melhor cama", o que deu combustível aos críticos para dizer que o autor tinha um péssimo casamento.

Vestida em trajes da época, Jennie Dobson (peça preferida de Shakespeare: "Ricardo 3º") é uma das guias da Shakespeare's Birthplace, casa em que o poeta nasceu e cresceu ""e que virou museu e centro de estudos. Jennie diz que, naquele tempo, a melhor cama do lar era oferecida às visitas. "Ficava na sala, perto da janela, para os vizinhos poderem invejar", diz. "Não é que ele desdenhasse de Anne." Para seus defensores, Shakespeare era um apaixonado, e a "segunda cama" nada mais era do que aquela em que o casal se aconchegava.

No trajeto até as casas mais distantes, encontra-se outra atração de Stratford: os taxistas ""aparentemente os únicos locais que não gostam (ou que têm coragem de admitir que não gostam) de Shakespeare. "Não sou chegado. Nem eu nem ninguém da minha família. Prefiro John Grisham [autor de A Firma']", diz Archie, que aprecia o dramaturgo apenas pela leva de turistas que ele atrai.

Já Ike, vindo da Albânia, até se esforçou, mas nunca conseguiu se interessar. "Fui ver uma montagem de Romeu e Julieta'. Mas não teve graça, eu já sabia como ia terminar."

BRASÃO TATUADO

Ser ou não ser fã de Shakespeare não será uma opção para Suzana Araújo Kirk, que nasceu em 17 de dezembro de 2013, quatro meses antes de o tio-tataravô (e muitos tás mais) completar 450 anos. É filha do canadense Scott Kirk, 41, sobrinho-neto em 13º grau de Shakespeare, com a brasileira Dayane Kirk, 33.

Shakespeare teve três filhos e quatro netos. Mas, como estes não lhe deram bisnetos, sua linhagem direta acabou em 1670 ""assim, os descendentes de Joan, irmã de William, são hoje o que restou da estirpe daquele que se convencionou chamar de "o bardo".

Scott é criador de videogames educacionais e tem o brasão da família Shakespeare tatuado no antebraço direito. Em 2009, mudou-se de Londres para a Paraíba, atrás de sol e praia. Da Paraíba, migrou para Natal atrás de Dayane, professora do ensino fundamental e de inglês que ele conheceu pela internet.

Morando no Brasil até o começo do ano passado, o casal decidiu se mudar para Stratford para que a filha nascesse na terra dos seus ancestrais. Suzana ganhou o nome em homenagem à primeira filha de Shakespeare, Susanna.

Na Holy Trinity Church, mesma igreja onde William foi batizado e enterrado, a nova integrante brasileira do clã Shakespeare foi batizada em fevereiro com cobertura da imprensa britânica e transmissão ao vivo para os parentes em outros países. "Achamos que o melhor jeito de trazê-la a este mundo seria colocando-a em contato com suas raízes, fazendo com que ela nascesse na mesma cidade dos nossos ancestrais", diz Scott (peça preferida: "Hamlet").

"Estamos juntando vários livros ligados a Shakespeare para ler para Suzana", conta Dayane (peça favorita: "A Megera Domada"). A família acaba de se mudar para a Flórida -com sol e bom tempo, como o Brasil, mas com menos violência, explica Scott. Mas antes trouxeram a pequena Shakespeare a Natal para se conectar também com as raízes brasileiras.

A INVENÇÃO DO HUMANO

O que há num simples nome? No caso de Shakespeare, fama suficiente para garantir que ele e sua família fossem enterrados no sagrado altar da Holy Trinity Church, igreja anglicana de cerca de 800 anos, à beira do rio Avon.

Mas o autor não está ali só por homenagem à sua condição de cidadão ilustre, diz Carolyn Smith, sacristã da igreja (peça preferida: "A Tempestade"). Antes de morrer, ele estava bem de vida e pôde pagar pelo direito de "descansar" na igreja. Apesar de os Shakespeares ocuparem todo o chão em frente ao altar, outro poderoso da época, John Combe, tinha mais dinheiro que William e conseguiu galgar uma posição melhor, ao fundo e no alto -era um agiota.

Carolyn diz que a contradição da igreja é que muitas pessoas se ajoelham diante do altar para louvar não a Deus, mas a Shakespeare. "Acho estranho. E os padres acham mais que estranho. Mas esse lugar é sagrado para diferentes pessoas por diferentes motivos."

Para alguns, colocar Shakespeare no papel de Deus pode ser profanação. Para outros, nada é mais óbvio. O crítico literário americano Harold Bloom diz que Shakespeare inventou o ser humano e considera a bardolatria uma séria religião secular a ser seguida.

"O que Shakespeare diz continua válido até hoje porque fala de gente", diz Barbara Heliodora (peça favorita: divide-se entre "Hamlet" e "Rei Lear"). "Ele é fascinado pelo potencial do ser humano, para o bem e para o mal. É como se dissesse: 'Olha que maravilha a capacidade do ser humano de fazer tudo isso'."

"Aprende-se muito com Shakespeare. Não a dobrar guardanapos ou a escovar os dentes. A gente se enriquece quando lê porque compreende mais sobre os comportamentos humanos."

Para o inglês John Milton, professor de literatura inglesa na USP (peças preferidas: "Henrique 4º - partes 1 e 2"), o que faz a obra de Shakespeare tão importante e atraente até hoje é a facilidade em conectar os temas de 400 anos atrás com a realidade atual.

"Trabalho com os alunos 'O Mercador de Veneza', que tem elementos fortes de possível homossexualismo e a questão do racismo, com o tema dos judeus. Depois, vamos estudar 'Otelo', em que uma das ideias centrais é ciúme. Quem nunca sentiu ciúme? Nas comédias e tragédias mais famosas, há elementos humanos fundamentais que permitem fazer o elo entre os personagens e as vidas diárias de quase todo mundo, no mundo inteiro."

E, se o mundo inteiro é um palco, Londres era o palco de Shakespeare, seu local de trabalho. Foi lá que ele construiu sua carreira teatral -primeiro como ator, depois como autor.

OS HOMENS DO REI

Formou o grupo Lord Chamberlain's Men, que atuou durante os reinados de Elizabeth 1ª (1558-1603) e Jaime 1º (1603-1625). No primeiro período, a companhia já ganhara fama como a principal da cidade. No segundo, Shakespeare e seus colegas caíram nas graças do rei e se tornaram The King's Men -seu patrono passou a ser o próprio Jaime.

O teatro em que Shakespeare encenava suas peças, o Globe, foi destruído por um incêndio em 1613, reerguido no ano seguinte e demolido em 1644. Só há 17 anos uma réplica dele foi construída a 200 metros do local original, à beira do rio Tâmisa. Hoje, o fã de Shakespeare pode visitar o teatro, como turista, ou assistir a uma peça, como um espectador da época. A estrutura é praticamente igual, a céu aberto (por isso, não funciona nos meses de inverno). Quem paga menos vê o espetáculo mais de perto: o ingresso em frente ao palco, onde o público fica de pé, custa cinco libras.

"Cinco libras são só R$ 18!", calcula Neil Constable (peça favorita: "Medida por Medida"), CEO do Shakespeare's Globe, que acabara de voltar do Brasil, onde apoia o projeto de uma réplica do Globe no interior de Minas Gerais. A "filial" deve funcionar em Rio Acima, cidade com menos de 10.000 habitantes, e fazer parte de um complexo cultural nos moldes de Inhotim.

A ideia é que fique pronta até 2016 -a tempo das Olimpíadas. "Há 20 anos essa região de Londres, onde agora está o Globe, era precária. Hoje, está regenerada e atrai milhões de turistas. O Globe no Brasil pode fazer parte de um projeto de desenvolvimento daquela região. Colocar a cidade no mapa."

E, para espalhar Shakespeare ainda mais pelo mapa, o Globe acaba de iniciar o projeto Globe to Globe, que vai levar uma encenação de "Hamlet" a todos os países do mundo. A peça deve chegar ao Brasil em dezembro, com apresentações em São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Acima. A viagem do príncipe da Dinamarca só termina daqui a dois anos.

QUASE RAINHA

Junto com o Globe, a Royal Shakespeare Company (RSC), sediada em Stratford, é o outro grande representante do teatro shakespeariano. Se atores encenam Shakespeare pelo mundo o tempo todo, é lá que eles se formam -como se estivessem estudando numa Oxford ou Cambridge teatral. "Stratford é só trabalho. Não tem distrações, como em Londres. O ator vai ao teatro e, no máximo, ao pub, o Dirty Duck", diz o produtor da companhia, Jeremy Adams (peça escolhida: "Rei Lear"). "Apesar disso, os artistas amam estar lá, imersos no mesmo local onde Judi Dench, Ian McKellen e Ralph Fiennes passaram anos aprendendo na RSC."

A companhia também trabalha para aumentar a presença das mulheres no teatro. Na época do autor, atores homens interpretavam todos os papéis -masculinos e femininos. A diretora Elizabeth Freestone, que acaba de apresentar no Brasil uma encenação cantada do poema "A Violação de Lucrécia", da RSC, estuda o tema e diz que apenas 16% das figuras shakespearianas são mulheres. O personagem homem que mais fala, Hamlet, tem 1.539 linhas de discurso. A mulher, Rosalinda, de "Como Gostais", tem 730 -menos da metade.

"Isso não dá para mudar, mas a escolha dos atores, sim", diz Elizabeth, cuja versão de "A Violação" traz a mesma atriz como abusador e vítima. "Há hoje um forte movimento na Inglaterra pelo 'gender blind casting' (algo como 'escalação cega aos gêneros'), para que as mulheres interpretem todo tipo de papel."

Enquanto isso não acontece, elas garantem seu lugar de maioria nas plateias dos teatros. Cabelo branco, batom laranja e abraçada por um casaco de pele, Lucy Jackson viaja de Londres a Stratford várias vezes ao ano para assistir a todas as peças da RSC no Royal Shakespeare Theater. É espectadora das exigentes -já viu todas, em várias versões.

Naquela noite, a atração é "Henrique 4º - Parte 2". Ao fim da apresentação, diz que deu sorte: ótima performance, atores inspirados, cenário belíssimo. "Vi tantas vezes que quase sei de cor. Quando era jovem, eu namorava o príncipe dessa peça, que depois vira rei", diz. Então, esboça um sorriso: "Pena que a gente não se casou". O resto é silêncio.


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