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Michel Laub

Nomes do horror

Palavras são a primeira arma das vítimas de tentativas de extermínio --e às vezes a única

Poucas coisas são mais intensas que um pesadelo. E poucas coisas podem ser mais chatas que ouvir alguém contá-lo.

Isso porque sensações não viram palavras com facilidade: um universo oceânico e abstrato de lembranças, que tem repercussão emocional direta para quem sonhou, só pode ser comunicado por um instrumento, a linguagem, naturalmente mais estreito. Ao acordar, tudo o que temos para evocar nossa angústia e medo são termos genéricos como "angústia" e "medo".

O mesmo pode ocorrer quando tratamos de um pesadelo histórico. Uma reportagem de Philip Gourevitch na revista "New Yorker" (http://goo.gl/aGixBw) mostra como, 20 anos depois da guerra de Ruanda, quando hutus assassinaram 800 mil tutsis em cem dias, numa espiral de ódio fermentada pelo colonialismo --e pelo olhar omisso da ONU--, ainda é difícil chegar a um consenso sobre como chamar o que aconteceu.

O país discute se a melhor palavra para tanto está na língua local, na língua dos colonizadores, se basta precisão verbal ("gutsemba", "massacrar") ou se é preciso a redundância de um neologismo ("gutsembatsemba", "massacrar radicalmente") para descrever os atos de uma tragédia absoluta.

Debates semelhantes acompanham qualquer trauma coletivo. Há grupos judaicos que rejeitam a expressão consagrada "holocausto", com seu caráter sacrificial, de expiação de pecados, em nome da menos ambígua "shoah" ("calamidade", "aniquilação"). Na Turquia, ainda é tabu usar "genocídio" para a matança armênia iniciada em 1915. No Brasil, dá-se algo semelhante na luta pelo reconhecimento do que foi e é praticado contra comunidades indígenas.

De qualquer forma, são batalhas pequenas dentro de uma guerra longa e difícil, de transmissão da memória para que o horror não se repita. Palavras são a primeira arma das vítimas de tentativas de extermínio, às vezes a única, e é preciso chegar a um modo eficiente --que não se resuma a slogans com vocabulário chancelado-- para que elas não traiam a natureza do que se viveu.

Ou seja, é preciso saber narrar. Discursos facilmente se banalizam, tornam-se solenes, sentimentais em excesso, causando o efeito contrário do que pretendem. Posso falar quantas vezes quiser em "limpeza étnica", e esta coluna não deixará de ser uma peça retórica para embrulhar peixe. Chegar à sensibilidade do público, causando empatia, desconforto e revolta ativa, o que é objetivo de qualquer militância antiviolência, demanda não apenas reproduzir a verdade dos fatos.

É preciso, também, enxergar a verdade da linguagem. Os relatos mais excruciantes sobre 1994, como os do próprio Gourevitch, encontram algum equilíbrio entre sua matéria extrema e incandescente e o distanciamento informativo que a expressa. Um filme como "Hotel Ruanda", que se alimenta de suspense, sustos e choro, usa a amoralidade narrativa para causar impacto moral na plateia.

Costuma-se dizer que a arte mente para dizer a verdade. O relato memorialístico tem outra natureza, mas sua capacidade de choque (ou encantamento) não dispensa o manejo estético. A falha em transmitir o que sonhamos à noite, que ocorre na grande maioria dos casos, é só uma de nossas formas inofensivas de solidão. É diferente quando o ruído está na voz de quem precisa comunicar o mal coletivo --algo que a grande história, com suas repetições mais trágicas que farsescas, não costuma perdoar.

Claro que, em casos como o de Ruanda --ou dos cristãos mortos por muçulmanos radicais na Nigéria, neste momento--, não depende apenas de quem narra. Por mais pungentes que sejam as vítimas, e elas são na medida do possível, a mensagem não é nada sem um receptor disposto a entendê-la. A botá-la acima de razões de Estado, razões econômicas, boa intenção seletiva e todas as desculpas para uma cumplicidade cujas trevas, igualmente, não são traduzíveis por um nome.

Como isso não é comum, o que ocorreu em 1994 continua sendo apenas um item numa lista atemporal e universal de genocídios, holocaustos, limpezas, extermínios, calamidades, aniquilações, massacres e gutsembatsembas.


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