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Gregorio Duvivier

Não estou aqui

Demorei a falar; mas comecei a ler muito cedo, quando descobri que é uma ótima maneira de não estar

Não estou aqui. Nunca estive. Isso é o que eu sei fazer melhor: não estar aqui, agora. Não sei quando foi que comecei a me especializar nisso, mas acho que foi cedo. Demorei a andar. Demorei a falar. Mas comecei a ler muito cedo, quando descobri que ler é uma ótima maneira de não estar. Passei os primeiros anos da minha vida não estando aqui, nem perto daqui: estava nos livros do Roald Dahl, no programa da Vovó Mafalda ou em outros lugares inexistentes como a Conchinchina. Lá, eu era amigo do rei. E do Ézio, artilheiro do Fluminense.

Durante os dez primeiros anos de vida, estive aqui poucas vezes. Lembro de um aniversário em que fiz uma breve aparição. Vi o mundo e achei apavorante. Era melhor voltar para o outro o mundo: era mais aconchegante. As crianças não gritavam tanto. Lá não tocava o Parabéns da Xuxa. Lá ninguém cantava "Com quem será que o Gregorio vai casar, vai depender se a..." e diziam o nome da menina que eu gostava na frente dos meus pais e da menina que eu gostava. A solução era se esconder debaixo da mesa, uma Conchinchina possível.

Se você me conheceu e me achou esquisito, desculpa: era muito provável que não fosse eu. Se me achou simpático, desculpa: também é provável que não fosse eu. A carcaça está muito bem treinada para fingir que sou eu. Talvez, se você me vir de novo, eu te reconheça. Isso tampouco vai significar que sou eu. A carcaça lembra de rostos e nomes. Ela olha nos seus olhos enquanto você fala. Não se preocupe. Ela é uma boa pessoa. Ela é uma pessoa melhor que eu. Preferia mil vezes estar aqui, falando com você. Mas tem alguma coisa que me puxa pra lá. É mais forte que eu.

Onde é lá? Deixei de frequentar a Conchinchina quando descobri que ela existe --ou existiu, era uma parte do Vietnã-- logo não obedece às leis que eu inventar. Em geral, quando não estou aqui estou num lugar em que eu já estive mas, quando eu estive, não estava, ou estou nos lugares em que um dia estarei mas, no dia em que eu estiver, talvez eu já não esteja mais. Raramente encontro comigo mesmo. Quando acontece, é uma festa.

Tem acontecido cada vez mais. Aqui tem a Clarice, os amigos, o teatro. Aqui tem empadinha de queijo e petit gateau com sorvete. Nas festas, quase não toca mais o Parabéns da Xuxa. Todo o mundo já sabe o nome da menina que eu gosto --inclusive ela. A gente mora junto. Do jeito que a coisa anda, qualquer dia me mudo pra cá.


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