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Aprendiz filmou gol da derrota em 1950

Auxiliar de filmagem, na época com 15 anos, registrou lance que fez do Uruguai campeão daquela Copa no Rio

O cinegrafista Milton Ferreira, hoje com 79 anos, lembra do dia em que foi colocado atrás das traves brasileiras

RENATA AGOSTINI DE BRASÍLIA

"Bota o foca. Bota o garoto lá", disse um dos cinegrafistas no início daquela tarde de 16 de julho de 1950.

No campo do recém-inaugurado Maracanã, a equipe contratada para filmar o mundial preparava-se para registrar Brasil e Uruguai, a final do torneio. Como de costume, haveria um cinegrafista atrás de cada gol, fazendo as imagens de apoio.

Naquele dia, porém, não houve alma solidária que topasse ficar junto às traves de Barbosa, o goleiro brasileiro. Filmar o quê? Para todos, o Brasil já era campeão. Esperava-se que as boas imagens estariam no gol oposto.

"Milton, você vai pegar a câmera e ficar atrás do gol", disse o chefe da equipe a um inseguro garoto de 15 anos.

O garoto e "foca" --iniciante na carreira, no jargão jornalístico-- era Milton da Costa Ferreira, um auxiliar técnico que acompanhara até então as filmagens dos jogos carregando e ajustando os equipamentos. "Tremi", lembra, em entrevista à Folha.

Foi assim, de improviso, que o garoto, hoje um senhor de 79 anos, tornou-se o cinegrafista que filmaria um dos gols mais tristes da história do futebol brasileiro.

Era dia de festa no estádio Mário Filho, então o maior do mundo. Torcedores haviam dormido nas filas para ver o Brasil ganhar seu primeiro título. Após uma campanha irrepreensível, bastava um empate contra o Uruguai. A confiança reinava. A alguns quilômetros dali, já havia comemoração no centro do Rio.

"A glória, a grande imagem, estava atrás do gol do Máspoli, do Uruguai. A expectativa era documentar vários gols", diz Ferreira, resgatando da memória a história compartilhada ao longo de décadas só com colegas próximos, filhos e netos. Até agora.

O gol que valeria o título, no entanto, viria dos pés do uruguaio Alcides Ghiggia, aos 33 minutos do segundo tempo. O atacante avançou pela lateral e chutou rasteiro, superando Barbosa e marcando o segundo dos uruguaios.

O tempo parou para os 200 mil torcedores que lotavam o Maracanã. Não para Ferreira. Ele seguiu firme com o dedo no botão de sua câmera.

"Depois que tirei a câmera do rosto, coloquei no chão e tive vontade de chorar. Até agora me emociono. Ficou um túmulo aquele Maracanã. Todos nós morremos um pouquinho naquele momento."

REGISTROS

Ferreira trabalhava como auxiliar havia três anos no Cine Laboratório Alex, do cineasta Alexandre Wulfes, como mostra a primeira página de sua agora amarelada carteira de trabalho. Começara no emprego durante as férias escolares, como aprendiz.

A equipe do laboratório de Wulfes foi contratada pelo cineasta Milton Rodrigues, irmão dos jornalistas Nelson Rodrigues e Mário Filho, e que havia vencido a concorrência para filmar com exclusividade o mundial.

Os registros eram feitos em película, revelados e exibidos depois da partida no cinema Cineac Trianon, no centro do Rio. Ferreira carregava equipamentos e ajudava no laboratório. Entre uma coisa e outra, aprendia o ofício usando as "sobras de filme".

A história de Ferreira, o homem atrás da lente que registrou o "Maracanazo", como ficou conhecido o dia em que Ghiggia calou o Maracanã, ficou inédita até hoje.

Nas últimas semanas, a Folha foi em busca de documentos históricos e personagens que participaram das filmagens naquele dia.

Na Cinemateca Brasileira, na Cinemateca do Uruguai, no Museu do Futebol e na CBF (Confederação Brasileira de Futebol), as referências esgotam-se em Milton Rodrigues e no estúdio cinematográfico Cinédia, que participara do consórcio vencedor.

Mas os arquivos do estúdio, guardados por Alice Gonzaga, filha do fundador, mostram que a Cinédia pouco fez. Um "termo de ajuste" cedeu a Rodrigues os direitos sobre as filmagens, como atesta um contrato de 22 maio de 1950 a que a Folha teve acesso.

"A Cinédia entrou com o nome. Era só fachada. Ficou tudo a cargo do Milton Rodrigues", diz Gonzaga.

Os registros da produtora de Rodrigues se perderam. Quase tudo foi destruído em incêndios e o restante acabou no lixo, conta Haydee Rodrigues, filha de Milton.

"Meu pai tinha horror a seguro. Dizia que se fizesse, aí é que pegava fogo mesmo", afirma. "Para completar, minha mãe acabou se desfazendo de muita coisa que sobrou ao longo do tempo. Fiquei danada com ela."

A participação do Cine Laboratório Alex nas filmagens da Copa é confirmada por Eurico Richers, sobrinho de Alexandre Wulfes e irmão de Herbert Richers, o patrono da dublagem no país.

"O laboratório participou de tudo, do início ao fim. O Milton Rodrigues chamou também uns italianos", lembra Eurico Richers, 90.

Após a estreia na final da Copa de 1950, Milton Ferreira trabalhou na extinta TV Tupi, na TV Globo, na TV Educativa, entre outras emissoras. Aposentou-se em 2001 e hoje mora com um dos filhos, a nora e dois netos em Vicente Pires, perto de Brasília.

Guarda com carinho as poucas fotos que restaram de sua carreira e, na memória, as dezenas de histórias vividas atrás das câmeras. Não contava que um dia estaria na frente de uma delas.

"Depois de todos esses anos, virei vedete", diz.


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