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Artista recria Pasolini na periferia de SP

Remake do clássico 'O Evangelho Segundo São Mateus' com atores amadores vai estrear na Bienal em setembro

Obra do espanhol Juan Pérez Agirregoikoa é uma crítica à religião, filmada num território de igrejas evangélicas

SILAS MARTÍ DE SÃO PAULO

Na visão do artista espanhol Juan Pérez Agirregoikoa, o bairro de Cidade Tiradentes, na zona leste paulistana, lembra a Palestina atual.

"É um lugar cheio de possibilidades plásticas", diz ele, olhando para um campinho de futebol diante de casebres de alvenaria. "Quando vi isso, sabia que tinha de filmar aqui. E às vezes até a natureza ajuda, com raios e relâmpagos meio bíblicos no céu."

Agirregoikoa buscava mesmo um cenário dos tempos de Jesus Cristo para ambientar "Letra Morta", filme que está rodando para estrear na próxima Bienal de São Paulo, que começa em setembro.

Sua obra é um remake de "O Evangelho Segundo São Mateus", clássico de Pier Paolo Pasolini filmado há 50 anos em povoados do sul da Itália que na opinião do artista lembram a periferia paulistana.

"Queria cenários parecidos com os de Pasolini, esse espaço onde acaba a cidade e começa o campo", conta Agirregoikoa. "Não vim ao Brasil buscar miséria, mas aqui a ideia de favela às vezes coincide com periferia."

Ele também descobriu um fervor religioso forte nessa periferia, com grandes igrejas evangélicas coroando a paisagem de "construções inacabadas".

"É nos lugares com mais problemas que a religião ocupa o lugar do Estado", diz o espanhol. "Há um vazio de poder que acaba sendo ocupado pela religião. Sempre digo que cada um negocia sua angústia como pode."

Essa é também a ideia central de seu remake. Embora seja quase uma cópia quadro a quadro do original em termos formais, adotando até o uso do preto e branco, Agirregoikoa privilegiou trechos do texto bíblico que refletem sobre o capital e o trabalho, dizendo ver em Mateus um "evangelho dos banqueiros".

"Não existiria o capitalismo sem o cristianismo", diz o artista. "Essa ideia é quase literal nos evangelhos."

Ele também bancou seu filme seguindo o exemplo do neorrealista italiano, que usava atores amadores. Agirregoikoa até costurou as roupas dos personagens, vividos por moradores da Cidade Tiradentes e do Jardim Pantanal, também na zona leste.

"Muitos deles são evangélicos, então avisava que o filme é uma crítica à religião", diz Agirregoikoa. "Na minha opinião, a religião sequestra a energia humana prometendo amor e só serviu para que a Europa se expandisse pelo mundo destroçando tudo."

Elizeu dos Santos, um ex-evangélico que até adotou o sobrenome artístico Kouyate, é um desses atores da Cidade Tiradentes que está no filme do artista espanhol.

"É muito emocionante", diz Santos. "Dentro e fora da Igreja só enxergava relações de preconceito e vi que atuando as pessoas conseguem se ver de igual para igual."

FAVELA 'BLADE RUNNER'

Agirregoikoa e seu diretor de fotografia, o também espanhol José María Zabala, dizem enxergar algo dessa harmonia na zona leste. Na opinião deles, é um território que lembra a vida no interior da Espanha de décadas atrás.

"Mesmo periférico, esse é um lugar bonito", diz Natalino de Jesus, que trabalha num centro cultural da Cidade Tiradentes e ajudou na produção do filme. "Aqui era um morrão, a gente empinava pipa. Era o nosso espaço."

Mas no filme, o lugar aparece transfigurado como terreno árido e hostil. Zabala diz que tentou refletir nas sequências a ruína dos ideais do modernismo e algo da distopia cibernética de "Blade Runner", clássico de Ridley Scott lançado em 1982.

"Na Espanha, ainda vamos descobrir qual é a força da favela", dizia Zabala numa rua da Cidade Tiradentes. "Isso aqui é o anarcocapitalismo."


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