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João Pereira Coutinho

As chuteiras são mortais

No século 21, democracia plena é mais que futebol: é educação, saúde, liberdade individual, prosperidade

Toda gente que é gente já escreveu sobre o Brasil X Alemanha. "Derrota." "Humilhação." "Massacre." "Trauma." "Tragédia." Quanto drama. Quantos excessos.

E, no entanto, o que mais me impressionou na derrota brasileira não foi o jogo propriamente dito. Foram as palavras de David Luiz no fim do jogo. Disse ele que gostaria de ter dado uma alegria ao seu povo. Pelo menos no futebol. Para mim, essas palavras são mais trágicas que o jogo propriamente dito. Sinal de que estou envelhecendo?

Talvez. Ou, então, lendo em demasia. Quando a Copa começou, fui assistindo aos jogos e, nos intervalos, lendo um dos livros mais notáveis de 2014. O autor é David Goldblatt, o título é "Futebol Nation" (nação do futebol). Resumindo, é uma história do Brasil contemporâneo através do jogo.

A tese de Goldblatt é ambiciosa: o Brasil pode ter escritores, músicos ou artistas plásticos com interesse para o século 20. Mas é o futebol que define o país. Porque o futebol foi o agente cimeiro na construção de uma identidade nacional a partir do momento em que Charles Miller trouxe essa "moda inglesa" para São Paulo, em finais do século 19.

O futebol começou por "democratizar" o Brasil, convocando ricos e pobres para dentro do campo --e, pormenor importante, para as mesmas arquibancadas. Mas essa "democratização" não foi uma história limpa de preconceitos raciais.

Pessoalmente, desconhecia a história do mulato Carlos Alberto, que em 1916 jogou com a cara coberta de pó de arroz pelo Fluminense. Ou da ordem presidencial de Epitácio Pessoa para que nenhum jogador negro fizesse parte da seleção, caso contrário o Brasil sofreria vexames internacionais.

Sem falar, claro, do Maracanazo de 1950: o Brasil perdia a Copa em casa para o Uruguai e os três bodes expiatórios --Juvenal, zagueiro; Bigode, lateral-esquerdo; e, sobretudo, o goleiro Barbosa-- eram, muito apropriadamente, negros.

Aliás, sobre Barbosa, duas histórias antológicas. A primeira, contada pelo grande cronista Mário Filho, sobre o dia em que ele entrou num botequim e escutou uma mãe dizer ao filho: "Veja, aquele é o homem que fez todo o Brasil chorar".

E, sobre o mesmo Barbosa, será mesmo verdade que em 1994 o antigo goleiro foi impedido de entrar nos treinos da seleção em Teresópolis para não azarar a Copa?

Escusado será dizer que as tensões raciais diluíram-se com dois nomes: Pelé e Garrincha. Mas não se diluiu a tentação autoritária do poder político de usar o futebol como expressão nacionalista extrema. Assim foi com Getúlio (no Estado Novo e pós-1950). Assim foi na ditadura militar. E assim foi em democracia, sobretudo nos anos Lula e na campanha para a Copa de 2014.

Pergunto: será que Carlos Drummond de Andrade, que assinou crônicas de futebol para esta Folha nas Copas de 1958 a 1986, escreveu alguma coisa a respeito? Pagava para ler. Como paguei para ler, no livro de Goldblatt, pormenores anedóticos (e deliciosos) sobre o jogo. Apenas mais um.

Em 1958, o Brasil partia para a Suécia. Mas, antes da gloriosa campanha, a seleção teve uma checada médica geral nos melhores hospitais do Rio.

Cenário de desastre: má nutrição; parasitas intestinais; alguns casos de sífilis; anemias várias; e, em matéria oral, mais de 300 dentes foram removidos das bocas dos jogadores. A primeira Copa foi ganha por uma seleção literalmente desdentada.

E regresso a David Luiz: em lágrimas e com candura extrema, o zagueiro só desejava dar alegria ao seu povo. Pelo menos, no futebol.

Errado, rapaz: não é você quem tem obrigação de dar alegria ao povo. Muito menos de carregar sobre os ombros, como acontece em regimes ditatoriais, os caprichos de qualquer governo.

O futebol ajudou a definir a identidade do Brasil. Mas, no século 21, uma democracia plena é mais que futebol: é educação, saúde, prosperidade econômica, liberdade individual.

Se os brasileiros têm motivos para chorar, esses motivos estão fora dos estádios.

P.S. - Influenciado por amigos brasileiros, escrevi na última coluna que "A Democracia na América", de Tocqueville, não tinha edição supimpa no Brasil. Exércitos de leitores corrigiram o colunista: existe, sim, e foi publicada"¦ pela própria Folha. E ainda dizem que o 7 x 1 da Alemanha é motivo de vergonha"¦


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