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Crítica - Romance

Livro recria desgraça patética de imigrantes do Japão nos EUA

'O Buda no Sótão' faz inventário dos infortúnios vividos por meninas japonesas

ALCIR PÉCORA ESPECIAL PARA A FOLHA

"O Buda no Sótão", romance da californiana de ascendência japonesa Julie Otsuka, 52, trata dos acontecimentos vividos por meninas de 13 ou 14 anos, que saíram do Japão para os Estados Unidos, prometidas ou compradas por imigrantes japoneses na Costa Oeste nas primeiras décadas do século 20.

O romance acompanha as ansiedades passadas na viagem de navio, as surpresas dos primeiros encontros e da primeira noite com os maridos, cujos bens e aparências eram muito diferentes das que exibiam nas fotos trocadas anteriormente.

O livro conta ainda as duras condições de trabalho na nova terra, o nascimento dos filhos, o estabelecimento dos bairros japoneses (J-towns) e os tateios de convívio subalterno com os americanos.

Entretanto, em vez de se encaminhar para a adaptação às novas formas de existência no estrangeiro, como se esperaria de uma saga de imigração, sucede o contrário. Com a Segunda Guerra e o ataque japonês a Pearl Harbor, os imigrantes e seus filhos passam a ser vistos com progressiva desconfiança, histeria e paranoia.

Sabe-se que, em março de 1942, o presidente Roosevelt, sob influxo do general DeWiit, assinou uma ordem de reassentamento dos japoneses da Costa Oeste --cerca de 110 mil pessoas, a maioria já nascida em território americano-- para campos de concentração no interior do país.

No prazo de uma semana, os imigrantes foram obrigados a abandonar as propriedades e embarcar em trens especiais, com uma mala por pessoa no máximo, para destinos ignorados.

Sabe-se igualmente que, apesar das desculpas oficiais apresentadas pelo presidente americano Ronald Reagan, em 1988, o assunto permanece relativamente obscuro --e é assim que o romance o trata: como uma súbita evaporação de milhares de vidas no interior de trens fantasmas a cruzar o interior dos Estados Unidos.

INVENTÁRIO

Vale notar que, em vez de compor uma saga de imigração com a sequência narrativa organizada em torno de um pequeno núcleo de personagens, Otsuka justapõe muitos pequenos acontecimentos vividos por todas aquelas mulheres, desde a viagem de navio que as trouxe do Japão até a partida dos trens para os campos, mais de 20 anos depois.

Cada um dos eventos é anotado e reunido aos outros como num inventário e, embora particulares, com detalhes únicos, nomes próprios e endereços exclusivos, eles são atribuídos a um sujeito coletivo "nós", que se constitui em oposição a "eles", os americanos --ambos generalizáveis entre si e estranhos uns aos outros.

A narrativa propriamente dita fica implícita. Deduz-se da somatória imaginária de muitos fragmentos biográficos de acento fundamentalmente patético. Patético porque o inventário de eventos, aparentemente frio, acentua a ideia de um destino que se abate sobre os imigrantes.

Apenas lhes cabe padecer o pesar que sentem com a determinação de quem nada tem de próprio, além da determinação espantosa de domar a desgraça pela rotina.

Do passado deixado pra trás, poucas imagens restaram. Uma delas, que nomeia o romance, é a de um pequeno Buda de latão esquecido num sótão. No seu rosto eternamente risonho se inscreve tanto a inexorabilidade do tempo que tudo destrói, como o sinal de que algo existiu certamente ali, conquanto já não se possa saber o que foi.


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