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Saramago enfim aborda comércio de armas

Tema, que perseguia o escritor havia anos, norteia o inédito e inacabado romance 'Alabardas, Alabardas...'

A obra iniciada pelo português meses antes de morrer chega às lojas com anotações do autor, mas sem um desfecho

MARCO RODRIGO ALMEIDA DE SÃO PAULO

"Afinal, talvez ainda escreva outro livro", registrou José Saramago em um arquivo de notas de seu computador em agosto de 2009. Poucos meses antes ele colocara o ponto final em "Caim", último romance publicado em vida. A saúde do escritor (1922-2010) estava bastante debilitada.

Não houve tempo. A última anotação sobre o projeto é de fevereiro de 2010. Saramago morreu em junho daquele ano, aos 87 anos.

Do romance inacabado restaram um título ("Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas") e três breves capítulos em 22 folhas.

O material sai agora pela Companhia das Letras, acompanhado por textos do ensaísta espanhol Fernando Gómez Aguilera, do escritor italiano Roberto Saviano e do antropólogo brasileiro Luiz Eduardo Soares, e ilustrações do alemão Gunter Grass.

O volume traz ainda as anotações de Saramago durante a escrita do livro, nas quais ele comenta os caminhos que pretendia seguir na história.

"Alabardas, Alabardas...", título retirado da tragicomédia "Exortação da Guerra", de Gil Vicente (1465-1536), segue os passos de Artur Paz Semedo, funcionário da fábricas de armas Produções Belona S.A.

Funcionário aplicado, apaixonado por armamentos, a ponto de quase desfalecer ao contemplar peças de artilharia. Tanta dedicação acaba por lhe custar o casamento.

O comércio de armas era um tema que perseguia Saramago havia tempos. "Ele dizia que quem, por causa da ditadura, havia ficado calado por tanto tempo, não podia morrer sem dizer tudo", relata Pilar del Río, viúva do escritor.

O estopim para criar a trama veio de um episódio supostamente ocorrido durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) --uma granada que não explodiu, sabotada por operários comunistas. A bomba trazia dentro a frase "Esta bomba não rebentará".

Encorajado pela ex-mulher, Semedo passa a investigar os arquivos da Belona para descobrir se há alguma relação entre a fábrica (1936-1939) e a bomba sabotada.

A trama não vai muito além disso. O que Saramago exatamente planejava é um mistério (Pilar conhece o final imaginado pelo autor, mas guarda sigilo absoluto).

Por outro lado, muito do estilo de Saramago está intacto nas poucas páginas: a escrita vigorosa e original; o uso da vírgula como sinal de pontuação; o tom direto da narração; o gosto pelas alegorias; a ironia cética; a encenação de grandes conflitos morais.

Fernando Gómez Aguilera, biógrafo de Saramago, avalia que "Alabardas, Alabardas..." mantém laços com o período de escrita do autor iniciado após "Ensaio sobre a Cegueira" (1995), marcado pelo objetivo de lançar dúvidas sobre a ordem política contemporânea e denunciar a irracionalidade do ser humano.

A esperança, como quase sempre na obra do português, está depositada na mulher. Felícia, indicam os manuscritos, é uma espécie de consciência do ex-marido e contraponto ao cínico universo masculino.

Não por acaso, Saramago reservava a Felícia a provocação do romance. "O livro terminará com um sonoro Vai à merda' proferido por ela. Um remate exemplar", anotou em setembro de 2009.

"O vai à merda' é uma espécie de testamento de quem se rebelou até o último momento. Extraordinária insubmissão", diz Aguilera.


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