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Crítica Poesia

Escritor revê legado moderno do século 20, mas não insere perspectiva atual

Para se compreender o sentimento é preciso ter gana para perfurar camadas enrijecidas da experiência

HEITOR FERRAZ ESPECIAL PARA A FOLHA

Em Eucanaã Ferraz, a linguagem é simples, coloquial urbana, com alguns momentos de elevação. O sentimento é nosso conhecido, de dor, coração partido, separação amorosa, consolo, olhar que divaga sobre a cidade, sobre as coisas do mundo, sobre os próprios sentimentos, enfim.

De forma geral, ele trata do mundo que o cerca, com seus aspectos carcomidos (leões de pedra, um busto do príncipe dos poetas), com suas viagens, como a Lisboa e Paris, uma Paris invadida por bois (seriam os bois drummondianos ou os do balé de Darius Milhaud?), as transformações do cotidiano.

Neste sentido, estamos diante de um livro de poemas atual, conectado às questões mais gerais do homem. Seu projeto, desde a primeira página de "Sentimental", sexta coletânea em sua carreira, vem expresso no primeiro poema do livro, que se chama, com toda a simplicidade, "O Coração".

Trata-se de um dístico: "Quase só músculo a carne dura./ É preciso morder com força". Como em toda boa concisão moderna, cabe muita coisa dentro destes mínimos versos.

Primeiro, a observação física do coração, um músculo; a ambiguidade da palavra "dura", que é tanto um adjetivo (da resistência desta carne) quanto um verbo (no sentido de duração, a carne que suporta os revezes da vida). Penetrar essas camadas é um projeto: "É preciso morder com força".

A se tomar o título como eixo do livro, para se compreender o sentimento é preciso "morder com força", ter gana para perfurar camadas enrijecidas da experiência, já que a experiência moderna parece estar petrificada. Esse é o ponto forte de seu livro, como projeto de investigação sentimental e ao mesmo tempo racional das coisas que nos cercam.

LEGADO MODERNO

No entanto, desde o começo, o leitor precisa lidar com uma série de obstáculos advindos do mundo da cultura moderna, ou melhor, do legado moderno do século 20, que está tanto na linguagem do poeta quanto na estrutura dos seus poemas.

E é esse legado que cria o problema central no conjunto de Eucanaã Ferraz. Enfrentar a petrificação da experiência a partir e na dependência de um modelo poético já consolidado e consagrado, um modelo de prestígio e que o próprio poeta busca homenagear, sem perscrutá-lo com perspectiva atual.

E não são poucas as referências, ou homenagens, expressas. São os casos, por exemplo, de "A Beleza É uma Ferida que nos Atinge", que cita poemas de Ferreira Gullar e Alberto Martins; "Da Vista e do Visto", que dialoga com o poema "Tarde de Maio", de Drummond; "Sangue do Meu Sangue", que parte do poema "A Pulga", de Murilo Mendes, entre outros.

CÓPIA DO MARFIM

Tomados fora de seu contexto histórico, há como que uma petrificação do próprio legado moderno. E essa petrificação parece espraiar-se ao conjunto dos poemas, de forma geral.

Num poema-homenagem ao seu colega Antonio Cicero, "Vida e Obra", ele termina, comparando a poesia com o copo de vinho, com o seguinte dístico: "Repare que o mesmo se dá conosco: o peso/ faz-se leve em nós se um verso nos acontece". A poesia alivia. Não o leitor, mas apenas o poeta, ou poetas.

Eis o nó: se a arte moderna nasceu justamente na contramão do alívio, com desejos de sacudir o velho sofá burguês (ela queria ser antiburguesa), em "Sentimental" parece que ela volta ao sofá do belo, com estofado moderno.

E o poeta, recomposto em sua torre, não mais de marfim, mas de alguma cópia do marfim (e a ideia de cópia está expressa em "Melancolia", um dos melhores do livro), rumina "certos pensamentos e monotonias".

Tudo em chave prestigiosa, ou seja, com o prestígio da arte moderna. Mas o coração do presente parece ser mais duro. Ou pede novas "dentaduras duplas".

SENTIMENTAL

AUTOR Eucanaã Ferraz

EDITORA Companhia das Letras

QUANTO R$ 32 (96 págs.)

AVALIAÇÃO regular


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