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Crítica romance

Herói sublime dá amplidão a livro russo

"Oblómov", de Ivan Gontcharóv, prima pela construção minuciosa do caráter do protagonista

Como um autêntico herói, ele reúne atributos de todos numa química única, o que também significa dizer que não há nenhum outro como Oblómov

ALCIR PÉCORA ESPECIAL PARA A FOLHA

Filho de comerciantes ricos, empregado no serviço público e, por anos, censor do Ministério da Educação, o russo Ivan Gontcharóv (1812-1891) escreveu memórias de viagem, crítica, poesia, contos, além de dois outros romances, mas a sua maravilha é única: "Oblómov" (1859).

O romance está estruturado em quatro partes. A primeira mostra o aristocrata Oblómov vivendo preguiçosamente num apartamento em São Petersburgo, tendo ao lado o fiel e resmungão criado Zakhar.

Atormentado pela cobrança do senhorio, dos fornecedores, e ainda pelas notícias vindas de sua propriedade rural cujos rendimentos eram progressivamente menores, ele pensa em retornar à aldeia para tomar a frente de seus negócios herdados.

Contudo, antes de agir, a sua habitual letargia o leva a contentar-se com um plano mental de reforma do velho feudo familiar.

E Oblómov sequer dá fecho ao plano antes de gostosamente adormecer. Sonha então com a vida de menino nas terras dos pais, quando é poupado de todos os esforços e cercado de cuidados que o impedem de brincar com as outras crianças.

Sempre bem alimentado pelos quitutes continuamente saídos da cozinha, os seus dias mais calidamente lembrados se passam sob a ação dos aromas e sons familiares às refeições.

Com a chegada, no apartamento, de seu amigo de infância, Stolz, filho de um alemão que lhe deu uma educação prática e o tornou um homem de sucesso, finda a primeira parte.

Na seguinte, sob pressão enérgica do amigo, que o obriga a sair de casa, Oblómov conhece Olga, jovem inteligente e encantadora, pela qual se apaixona e é correspondido.

No entanto, como casar implica em dar jeito nas finanças e no solar paterno, seguem-se páginas de exasperante luta espiritual entre a paixão por Olga e a indisposição para a vida prática.

Na terceira parte, em vez de seguir finalmente para a aldeia e tratar de pôr ordem nos negócios, Oblómov acaba se mudando para uma casa mais barata no subúrbio de São Petersburgo.

Lá, ainda moram a proprietária do imóvel, uma forte viúva, imersa em infindáveis afazeres domésticos, e o irmão dela, burocrata de maus bofes que enreda e rouba o dócil herdeiro.

Na última, Oblómov se adapta à vida rebaixada do subúrbio. Os seus dias, corridos pachorrentamente no sofá, sob o manto de verdadeira devoção que lhe dedica a viúva operosa, acabam fazendo com que Oblómov reconheça ali um rebatimento real do conforto familiar do passado na aldeia.

CONSTRUÇÃO MINUCIOSA

Não tema o leitor, pois nada lhe revelei: o segredo do romance não está no que acontece, mesmo porque quase nada acontece, mas na construção minuciosa do caráter de Oblómov, cujos enredos mais labirínticos somos levados a visitar.

E quanta vida interior, que amplidão de mundo se revela naquela inércia, ainda mais quando contrastado com o exterior agitado de eventos, mas emocionalmente mesquinho.

A crítica marxista viu no livro de Gontcharóv um retrato da aristocracia que perde sua capacidade produtiva, mas é uma simplificação insustentável: não apenas porque não há nada mais palpitante no livro que a personagem de Oblómov, quanto porque, em matéria de inércia, supera-o o criado Zakhar, o que torna sempre hilariante a conversa deles.

"Oblomovismo", desse ponto de vista, é um estado que atinge a todos os russos, e apenas Stolz, que é meio-alemão, parece imune à praga. Mas tampouco rende uma interpretação nacional do caráter de Oblómov.

Como um autêntico herói, ele reúne atributos de todos numa química única, o que também significa dizer que não há nenhum outro como Oblómov.

A personificação paradoxalmente sublime do personagem, que absorve um mundo inteiro para apagá-lo num longo suspiro, permite conhecer também o máximo poder da forma romance.

ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária da Unicamp e autor de "Máquina de Gêneros" (Edusp).


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