Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

Ilustrada

  • Tamanho da Letra  
  • Comunicar Erros  
  • Imprimir  

Relatos do fim do mundo

Henrique Stabile/Divulgação
"...E a Beleza Matou a Humanidade", do arquiteto Henrique Stabile
"...E a Beleza Matou a Humanidade", do arquiteto Henrique Stabile
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Inspirada na profecia maia, a Folha pediu a escritores e artistas um texto ou uma imagem que ilustrasse sua visão pessoal de como seria o final dos tempos.

"Quando um dedo aponta para o céu, o tolo olha para o dedo." Se o provérbio chinês tem sentido num dia normal, ele desaparece no apocalipse. Diante do fim iminente, os olhos dos que aceitaram o desafio vagaram por toda parte.

Subiram ao céu, de onde viram cair meteoros ou uma inusitada chuva de pipoca. Foram ao campo, a um quarto escuro e, mais fundo, ao interior da mente masculina, de onde tiraram a resolução de viver o fim como uma mulher. Mas houve também quem visse o fim de tudo e de todos como um processo real a se desenrolar diante de nós.

(TRAJANO PONTES)

-

'Que eu fosse tudo o que não havia conseguido ser'

ROGERIO SKYLAB

ESPECIAL PARA A FOLHA

No último dia de nossas vidas, estabeleci regras. A primeira, e a principal, seria abandonar a ideia de gênero. Como deixar a vida sem experimentar o outro sexo? Os preparativos para o último dia me fizeram adentrar lojas em busca do vestido ideal.

Interromperia a rotina no dia fatídico. Acordaria bem tarde e não iria ao trabalho. Pela primeira vez, não leria nenhum livro. O fim do mundo, ao menos, fez-me compreender o sentido da leitura.

Finalmente estava pronto. Que eu fosse tudo em 24 horas o que não havia conseguido ser por toda a vida.

Sapato alto, cremes, maquiagem, calcinha de lycra... O dia seguinte prometia. Mas, para minha surpresa, adormeci no horário de sempre. Quando acordei, esqueci que era o último dia do mundo.

Tomei o mesmo café, peguei o mesmo ônibus, trabalhei como se fosse um dia normal. Num momento, cheguei a lembrar do fim do mundo. Mas continuei meus afazeres, como se o enfado que sentia antes não fosse real.

Quando saí do trabalho, pensei que por fim fosse extravasar. Mas fiz exatamente o que vinha fazendo há anos: me dirigi à biblioteca pública e passei o resto do dia lendo.

ROGERIO SKYLAB é músico.

-

'Sei que a falta de assunto estimula a imaginação'

BRAULIO TAVARES

ESPECIAL PARA A FOLHA

O "fim do mundo pelo calendário maia" é uma invenção de jornalistas (sou um deles, sei o quanto a falta de assunto estimula a imaginação) para vender jornal a gente supersticiosa.

Temos dois fins do mundo que já começaram a acontecer:

1) o econômico, iniciado com a crise de 2008, que obriga populações inteiras a pagar trilhões de dólares injetados para salvar bancos;

2) o ambiental, com degelo dos polos, elevação do mar, desertificação, picos de temperaturas opostas cada vez maiores.

Fim do mundo é isto, o resto é "Arquivo X".

BRAULIO TAVARES é escritor e roteirista.

-

'O tiro deveria ser dado pelas costas e na cabeça'

VERONICA STIGGER

ESPECIAL PARA A FOLHA

Há tempos, Eduardo vinha adiando esta violência e esta felicidade.

Finalmente, às 11 horas do dia mais longo do ano, lá se encontrava ele diante de José, estancieiro na fronteira do Uruguai com o Rio Grande do Sul, lendário praticante da arte de assar o gado dentro do próprio couro.

José tinha sido claro: o tiro deveria ser dado pelas costas e na cabeça. Se o boi desconfiasse que ia morrer, a carne endurecia. Eduardo assentiu sem uma palavra.

Porém, ao se aproximar do boi, sussurrou algo, talvez um nome, para que o animal se voltasse e, no instante do tiro, o olhasse nos olhos.

VERONICA STIGGER é escritora.

-

'Merda de 3G que não pega em elevador; por que não me retuítam?'

GREGORIO DUVIVIER

ESPECIAL PARA A FOLHA

Caceta, o chão está tremendo. Cadê meu celular? "Chão tremendo... #FimDoMundo." Aquilo ali na frente é um prédio caindo? Pronto. Agora só falta botar um filtro. Lá embaixo, pego de outro ângulo. Merda de 3G que não pega em elevador. Earlybird. Não. Valencia. Foi. Curte, galera, curte. Olha o meteoro! Merda, perdi. Por que ninguém tá me retuitando? De repente, se eu pensar numa piada... Apocalipse. Eclipse. Calipso. Apocalipso. "Tá chegando o #Apocalipso." Nem fez sentido. Mas o pessoal está começando a curtir. Ah, se esses meteoros passassem mais devagarinho...

GREGORIO DUVIVIER é ator e roteirista.

-

'Na minha frente uma velha dança, com vestido longo, olhos fechados'

MARTINA SOHN FISCHER

ESPECIAL PARA A FOLHA

A escuridão surge em sombras. Sento no canto, ao fundo alguma música chega devagar, densa.

Raspo as unhas na parede, o barro escapa da unha, minha testa suando molha a barba.

Na minha frente uma velha dança, com vestido longo, olhos fechados, as rugas dançam mais do que ela, um cigarro nos dedos, boca suando, a velha me olha, olhos cheios de fim, olham para os meus, para o meu.

Continuo raspando as unhas, areia entra pela porta, a que irá nos cobrir, nesse velho lugar, ela é o fim enrugado e suado, ela ri, jorrando em mim seu riso seco e seu fim, o nosso.

MARTINA SOHN FISCHER é dramaturga.

-

'A égua selvagem que às vezes é vista por ali pariu'

DANIEL GALERA

ESPECIAL PARA A FOLHA

Na comunidade que vive isolada nos morros da Encantada seguindo o calendário maia, uma jovem mineira pensa em como continuará sua vida agora que o mundo não acabou em vinte e um de dezembro de dois mil e doze como previsto.

Nunca houve manhã tão silenciosa e a égua selvagem que às vezes é vista por ali pariu na madrugada; um potro raquítico testa as patas no pasto ao redor do acampamento. Uma mulher solta um grito lá para o lado dos banheiros (logo mais se ouvirá um helicóptero). Curioso que a gente se deite acreditando que tudo continuará no dia seguinte, ela pensa, e pisque os olhos sem medo de que tudo tenha sumido ao abri-los, e ela segue nessa linha de raciocínio até que o mundo de certa forma acaba e ela não consegue mais voltar atrás.

DANIEL GALERA é escritor.


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página