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Crítica Faroeste
Ficção permite tudo e liberta o cineasta das convenções
DO CRÍTICO DA FOLHAPARA OS FÃS, CONTINUA GARANTIDO O COQUETEL DE REFERÊNCIAS CULTURAIS E DIÁLOGOS INESPERADOS
Desde sua primeira cena, "Django Livre" é um filme carregado de situações em que o protagonista luta para se livrar da sujeição. Na trama, seguimos os vários passos da jornada de um herói, negro e escravo no Sul dos Estados Unidos, pouco tempo antes da abolição da escravatura em meio à Guerra de Secessão que contrapôs dois grupos, interesses e concepções de como deveria ser a América.
Na companhia do branco King Schultz, o emancipado Django vai encarnar o ideal de libertação, representado pela busca de sua amada escravizada numa fazenda nas entranhas do Mississipi.
Ao longo da jornada, a improvável dupla acumula peripécias como caçadora de recompensas, usando a astúcia para eliminar malfeitores e reparar injustiças. Até se deparar com uma situação que só se resolverá pela força bruta.
Descrito com esse esqueleto narrativo, o oitavo longa de Tarantino pode parecer igual a milhares de histórias movidas à superação de obstáculos.
Porém, é inevitável esperar de um filme de Tarantino no mínimo uma assinatura, uma marca que se reconhece e se consome com prazer.
Para os fãs, continua garantido o coquetel surpreendente de referências culturais, diálogos inesperados e engraçados e explosões de violência além dos limites do bom gosto. O tempero musical, com uma trilha de clássicos obscuros, completa essa receita de cinema que preferimos indefinir chamando de "pop".
Mas "Django Livre" demonstra também que Tarantino prossegue seu esforço para se libertar dos grilhões que mantiveram seu trabalho na categoria de divertimento cult, de uma estética sem ética, obra de um artista autista.
Desde o malfadado "À Prova de Morte", o diretor vem se confrontando com arquétipos convertidos em tabus e expondo-os a um tipo calculado de provocação.
Naquele, foram as mulheres, depois, em "Bastardos Inglórios", os judeus, e agora, os negros são recuperados às avessas, invertendo seu lugar-comum de personagens-vítimas e lançando-os no fogo da imaginação.
Aqui, ao contrário da ditadura dos filmes "baseados em fatos reais", a ficção permite tudo, libertando seu cinema das convenções.
Por isso, "Django Livre" confunde. Para uns soa racista e, para outros, subversivo. Alguns se divertem vendo-o como uma farsa cheia de risadas, enquanto outros enxergam um épico com figurinos de faroeste.
Em meio à discussão, Tarantino sorri como um bandido que tem numa mão as algemas e na outra as chaves.
(CÁSSIO STARLING CARLOS)