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Diário de Macau

o mapa da cultura

Literatura própria

Como desoxidar o português macaense

RÉGIS BONVICINO

A língua portuguesa em Macau é hoje uma realidade meramente institucional da administração pública.

Embora tenha sido colônia de Portugal por mais de 400 anos, Macau -que desde 1999 é região administrativa especial da China, sob gestão conjunta, em termos jurídicos, de Pequim e de Lisboa até 2049 (e sob gestão chinesa na prática, pois seus principais administradores são nomeados pelo governo chinês)- dá ao português apenas um status oficial.

Em Macau, o idioma limita-se às placas e aos nomes das ruas, travessas e becos e nos letreiros de lojas. Há, no máximo, 8.000 de seus falantes e, entre eles, poucos são chineses, em uma população de 600 mil habitantes.

Mas na abertura da 2ª edição do Festival Literário de Macau, realizado entre 10 e 16 deste mês, falou-se um bocadinho em português -com seus mais variados sotaques.

Um debate sobre as perspectivas dos escritores em um mundo globalizado trouxe a fala crítica de Luis Cardoso, do Timor-Leste, que classificou o atual estágio de internacionalização da literatura como mero "fait divers", fato pitoresco, reafirmando, em contrapartida, sua importância para a vida cultural de cada país.

Também participaram desse debate e de outras mesas do encontro José Eduardo Agualusa (Angola), Bi Feiyu (China continental), Valter Hugo Mãe (Portugal), a colunista da Folha Vanessa Barbara e Mauro Munhoz, diretor da Flip.

A abertura do festival deu-se no edifício do Centro de Ciência, inaugurado em 2010. O prédio, um conjunto de 14 unidades sob a forma de uma espiral ascendente, à beira-mar, é assinado pelo arquiteto sino-americano I.M.Pei, autor da pirâmide do Museu do Louvre.

CONTRAPONTO AOS CASSINOS

O festival, dirigido pelo jornalista português Ricardo Pinto, constitui-se em uma tentativa de criar uma literatura macaense de língua portuguesa, e de ser, ao mesmo tempo, um contraponto ao perfil comercial da cidade, que recebe, segundo dados oficiais, 28 milhões de turistas por ano, vindos, sobretudo, da China continental.

Os cassinos de Macau são os maiores do mundo, superando os de Las Vegas, nos EUA, em termos de faturamento. No hotel onde estive havia um deles, aberto 24 horas. Metade dos frequentadores é composta por jovens. Para os jovens chineses, ir a um cassino equivale a ir a um grande show de rock.

O festival foi pensado para que houvesse articulação entre o evento e a vida local. Por isso, realizou-se uma feira de livros, além de palestras em escolas. Um dos locais mais importantes da cidade é a Livraria Portuguesa, de rua, de propriedade do governo chinês, mas sob administração do próprio Ricardo Pinto.

CAMÕES E PESSANHA

A lenda repete que Luiz de Camões (c. 1524-80) escreveu, em Macau, cantos de "Os Lusíadas". Em um deles, Camões anota a existência da Grande Muralha da China, antes mesmo dos mapas de cartografia. Em outro, ele descreve o comércio da Nau do Trato, prata fina e especiaria, de Macau.

No Jardim dos Pombos Brancos, no centro da cidade, próximo às ruínas da Igreja de São Paulo, onde ele residiu, segundo essa mesma lenda, em uma gruta, há hoje uma estátua do autor de "Os Lusíadas".

Diante de sua estátua, percebe-se a importância simbólica absoluta de Macau para a língua. No Cemitério de São Miguel, jaz o túmulo de outro grande poeta, Camilo Pessanha (1867-1926), que foi juiz de direito em Macau, onde escreveu "Clepsidra" (1920) e onde morreu.

Sua casa não existe mais. No local se encontra hoje um dos prédios do banco HSBC, no Leal Senado, praça central da cidade. Se a visita à estátua de Camões remete ao nascimento fabuloso da língua, a visita à campa de Pessanha registra seu declínio: "Floriram por engano as rosas bravas /No Inverno...". O português existe quase por engano nesta península.

REMINISCÊNCIA CHINESA

O Jardim de Lou Lim Ieoc é o único jardim em estilo Suzhou. Imita a natureza (água, terra, fogo e ar). Suas pedras sofrem o desgaste do tempo e adquirem aspectos escultóricos fabulares. Há lagos com carpas e flores de lótus. Há uma única trilha, em forma de serpente, por onde se caminha, porque os "maus espíritos se deslocam em linha reta". Ele é a maior reminiscência tipicamente chinesa em Macau.

O Festival Literário tenta tornar o português uma língua viva de novo, para que ela, ao contrário deste Jardim, não permaneça na condição de mera recordação, bela, mas decorativa e isolada.

Régis Bonvicino viajou a convite do Festival Literário de Macau.


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