Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

Ilustrissima

  • Tamanho da Letra  
  • Comunicar Erros  
  • Imprimir  

Arquivo Aberto

memórias que viram histórias

Missão "impossível"

São Paulo, 1999

RODRIGO MINDLIN LOEB

Era uma das inúmeras manhãs de sol, céu azul sobre os morros que acompanham o Vale do Paraíba. Na Barra Bonita, após um café da manhã finalizado com uma sugestão de meu avô Juca (como o conheci), uma gemada na xícara com gotas de café, cada um foi vestir seu traje de sol e andamos pelo gramado.

À nossa frente, a frondosa seringueira, com sua grande copa. A piscina azul à direita, palco de muita diversão, com o totem de madeira esculpido por Adão Pinheiro, artista de Olinda.

No meio do trajeto paramos para dar um oi a minha avó Guita, que tomava sol, maiô e óculos escuros. Nós íamos mais adiante, depois da seringueira, atrás da casa de brincar de madeira e telhado de sapé.

Caminhamos, meu avô conversando comigo (que não tinha chegado nem perto de completar a minha primeira década vivida). Ia pensando em como aquilo era livre, leve, divertido, tomar um banho de sol nu. Cada um deitado de um lado, meu avô lendo o jornal, logo uma curta soneca, eu mergulhado em minhas reflexões e viagens. Silêncio.

Vi sempre nos meus avós, Guita e Juca, essa liberdade em relação à vida, às pessoas, ao convívio e à intensidade com que atravessavam as décadas que se seguiram, ao mesmo tempo em que eu atravessava as minhas primeiras. Essa experiência me permitiu sentir que as afinidades, as amizades, as possibilidades são atemporais, com a mesma liberdade. Sempre as pessoas, de fato acolhidas pelos livros.

A parede da biblioteca à esquerda, uma estante ocupando tudo, interrompida por dois elementos distintos dos livros, uma lareira revestida de cerâmica "paraíba" marrom, geométrica, e mais à direita, um armário-bar, com os licores, whiskies, o Carpano que Guita adorava tomar com gelo, as pequenas taças de vodca, que ficava no freezer para ganhar viscosidade.

Os sofás, as poltronas de Guita e José, as poltronas Mole, de onde pude observar as muitas pessoas que passaram pela casa de meus avós.

A biblioteca já se expandia, quando comecei a frequentá-la, para um pavilhão no jardim, de dois andares, mezanino com um vazio em metade da planta e uma passarela metálica em L acompanhando e acessando as estantes repletas de livros.

Um pavilhão lindamente desenhado pelo Flávio, arquiteto e filho de tia Esther, irmã tão querida de meu avô Juca. Anos depois, na década de 80, Flávio desenhou outro pavilhão iria dominar o jardim aonde jogávamos futebol sempre que a oportunidade se apresentava.

A biblioteca continuou crescendo, ganhou territórios do outro lado da rua, entre eles um apartamento que pude algumas vezes visitar para escolher livros que me interessassem e que não iriam permanecer no corpo da biblioteca.

No final de 1999, recém-retornado de Londres, depois de dois anos de pós-graduação, fui convidado pelo meu avô para uma conversa.

Na saleta anexa à sala de jantar, com a estante de Proust, a poltrona de descanso, nos sentamos.

O tom era ao mesmo tempo empolgado e solene: "Vamos doar a coleção Brasiliana da Biblioteca à Universidade de São Paulo. A Fundação Lampadia/Vitae decidiu dedicar os seus últimos recursos financeiros para a construção de uma sede, e com chave de ouro, encerrar suas atividades. A USP poderá ceder o uso de um terreno e nós iremos buscar recursos para viabilizar a construção e a operação para os 99 anos seguintes a sua instalação, pois no centésimo ano, o patrimônio será incorporado pela Universidade de São Paulo. Queremos que o projeto de arquitetura seja feito por você, pelo Eduardo de Almeida e pelo Flávio".

Entendi a empolgação e o tom solene, primeiro, que sonho incrível!, depois, que missão quase "impossível"!

Mais de uma década se passou, muitos momentos de silêncio ao lado de meu avô Juca, como aquele dos banhos de sol. Nasceram Mhira e Rhavi, meus filhos. Morreram Arnaldo, Esther, Guita e em seguida José, István, meu vital sogro Gil.

Nunca duvidei. Inaugura a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, patrimônio público, cheia de liberdade, leveza e alegria, cheia de silêncio.


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página