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Arquivo aberto

Chá com Leonora Carrington

Cidade do México, 2006memórias que viram histórias

ADRIANA ZEHBRAUSKAS

Conheci Leonora Carrington numa tarde cinza e fria de novembro. Contratada pelo jornal inglês "The Guardian", cheguei cedo para a entrevista e resolvi esperar do lado de fora da casa pela repórter, recém-chegada de Londres. Certifiquei-me de que era ali e acendi um cigarro, buscando me proteger da chuva fina na soleira da porta.

Enquanto esperava, fiquei observando a rua, bem movimentada, e pensei nas pessoas que passavam, tão apressadas, sem dar a menor atenção àquela casa simples, desconhecendo que ali vivia uma ilustre senhora cuja história se confunde com a da arte moderna.

Nascida numa família milionária da Inglaterra, Leonora nunca aceitou os planos burgueses que seus pais traçaram para seu futuro. Amante das artes e da liberdade, era a rebelde da família. Aos 20 anos, numa exposição em Londres, conheceu Max Ernst, cujo trabalho já admirava. A admiração logo se tornou paixão. Esconjurada pelo pai, que lhe disse para nunca mais voltar, fugiu com Ernst (casado e 26 anos mais velho)para Paris.

Tocamos a campainha. Dentro, a casa era fria e escura. No andar de baixo, a sala com miniaturas de suas esculturas, obras de arte, e um antigo fogão de ferro, coberto de post-its desbotados, fazendo as vezes de escrivaninha. Leonora nos recebeu na porta da cozinha e logo nos ofereceu chá ("Eu fumo", disse. "Cigarro e café é demais."). Vestia um suéter preto, calças cinzas e levava uma pequena bolsinha a tiracolo, que nunca tirou.

Sentamos ao redor da pequena mesa redonda, a mesma à qual, em muitas ocasiões, sentaram-se Octavio Paz, Remedios Varo, Kati Horna e Edward James.

Ali passaríamos uma tarde inteira, em que ela, com quase 90 anos, lúcida e com um agudo senso de humor, nos contaria a incrível história de sua vida e fumaria um cigarro atrás do outro. A cozinha, como o resto da casa, era simples: um pequeno fogão de quatro bocas, com uma chaleira e uma leiteira de ágata, as poucas panelas penduradas na parede acima da pia e uma profusão de cartões-postais da Inglaterra no pequeno e único armário. A luz provinha de uma solitária lâmpada pendurada no teto.

Eu, ao mesmo tempo fascinada em estar ali ouvindo todas aquelas histórias, estava também cada vez mais preocupada: sabia que logo estaria escuro e precisava fotografá-la. Mas a cada vez que eu sugeria uma pausa para fotos, ela me olhava e dizia: "Não, fotografias hoje não, veja como estou despenteada".

E assim passou a tarde. Da Paris dos anos 30, seu tempo na França com Max Ernst, seus encontros com Picasso, Dalí, Breton e tantos outros, ao tortuoso caminho que a levou ao México (fugida de um hospital psiquiátrico na Espanha e casada por conveniência com um diplomata mexicano) e às histórias de família --a repórter, Joanna Moorhead, era parente dela e havia vindo em busca da famosa prima ovelha negra--, tudo parecia sair de um roteiro de cinema.

De repente, a cozinha ficou escura: mais um dos frequentes apagões da cidade. Velas foram trazidas à mesa, e a conversa derivou para tópicos mais mundanos. O dia a dia da vida no México foi o tópico dominante por alguns momentos e, entre tantas coisas que eu queria perguntar a ela, foi essa que saiu da minha boca: "Leonora, você gosta de viver aqui?". Depois de pensar alguns instantes, veio a resposta: "Sabe, depois de mais de 60 anos vivendo aqui, ainda não sei a resposta para essa pergunta".

A luz voltou, e essa frase ficou guardada na minha memória.

Fui presenteada com um elogio ("Gostei de você.") e um convite para regressar na manhã seguinte para fazer o retrato de que necessitava. "Estarei de banho tomado e penteada", anunciou. Voltei no dia seguinte e, de fato, lá estava Leonora, de banho tomado, perfumada e penteada: "Você tem 15 minutos". Fomos ao seu estúdio, no andar de cima. Ela foi gentil e me deu um pouco mais do que 15 minutos.

Alguns anos mais tarde, fui contratada pela revista "The World of Interiors" para fotografar a casa de Leonora. Dessa vez passei a tarde inteira fotografando, e tivemos pouco tempo para conversar.

Seu marido, o fotógrafo húngaro Emerico Weisz, já havia morrido, e logo seria a vez de Leonora, aos 94 anos, em 25 de maio de 2011.

Em mais de 70 anos, ela nunca regressou à casa de seus pais.


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