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Pra que mais?

Poços de Caldas, 2013 memórias que viram histórias

ANTONIO GERALDO FIGUEIREDO FERREIRA

As memórias, expostas na confluência de palavras e fotografias, costumam embalar vidas inteiras, que repousariam então na felicidade, estendida para todas as direções. Criam um tempo que se quer continuamente presente, experiência reposta como exemplo e, ao mesmo tempo, conselho. Tudo isso acaba de acontecer comigo, mas a lembrança do fato já habita todos os meus dias, transformando o que foi e o que ainda não houve.

Fui a Poços de Caldas, em 1º de maio, para uma palestra na Flipoços, feira literária na bela cidade de Antonio Candido, em Minas Gerais. Ariano Suassuna daria sua aula espetáculo na mesma data, à noite. Sua influência em minha obra é maior do que se pode supor. A junção do popular ao erudito, em seus diversos níveis, inclusive linguísticos, abarcando temas periféricos e, ao mesmo tempo, centrais, recriam de modo brilhante nossas especificidades, fato que sempre me cativou e, mais que isso, propiciou-me reflexões decisivas a respeito de nossa condição e do papel do artista brasileiro.

Cheguei preparado, carregando alguns livros dele, para a remota possibilidade de lhe encher a paciência e trocar algumas palavras. Então o destino me afagou, e tive a sorte de ficar no mesmo hotel. Mais ainda, no quarto ao lado do grande escritor. Minha esposa, que escuta melhor que as paredes, e, como convinha ao caso, além delas, ouviu a voz do mestre, que estaria no corredor. Eu tenho um zumbido desgraçado há anos e não escuto muito bem. Abri a porta correndo. Ele recebia um amigo. Enfiei-me na conversa e me apresentei.

Que delicadeza de homem. Estava acompanhado de sua mulher, Zélia, um encanto de pessoa que pede algum neologismo que dê conta de sua graça, aliás. Seu genro, Alexandre Nóbrega, é grande figura também. Conversamos, tirei fotos, dei-lhe um exemplar de "As Visitas que Hoje Estamos", pedi seu autógrafo. Ana Lúcia, minha companheira, recebeu um beijo tão carinhoso, tão paternal, que me emocionei.

Foi um daqueles momentos que valem por uma existência. Ele perguntou se assistiríamos à sua aula, tem cabimento? Eu não sabia, entretanto, que o destino, além de me afagar, carregar-me-ia no colo.

Ao final de sua conferência, Ariano tirou da maleta meu livro e o colocou sobre a mesa, antes de pegar as famosas pedras que sempre carrega. Alguns minutos depois, citou meu nome, disse que espiara minha obra e gostara de vários trechos. Leu um deles, "Jornal":

"Horóscopo, falências e obituário, pra que mais?"

O teatro inteiro riu. Citando outro fragmento, "Oitenta Anos", no qual um octogenário fala da vida, disse que achava interessante que um jovem autor pudesse entrar na cabeça de um velho. E, para minha glória, já que finalmente descobri o significado daquela expressão que diz que um sujeito, a partir de um determinado fato, pode morrer feliz, Ariano Suassuna completou: "Parece que eu que escrevi".

Acho que comecei a chorar, não sei. Ele então perguntou se eu estava no teatro. Pediu que me levantasse e bateu palmas. Ana Lúcia conta que o teatro inteiro o acompanhou. Eu não ouvi, juro.

A culpa não foi do zumbido porque até me esqueci dele. Eu estava ouvindo como nunca, tenho certeza, porque escutava uma única pessoa batendo palmas, uma só, com discrição, elegância e generosidade, um único homem aplaudindo, palmas que jamais deixarão de ecoar, mesmo que eu fique surdo por completo, mesmo que me arranquem as orelhas.


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