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Bauhaus em solo tropical

O grupo Ruptura e a utopia da arte cartesiana

SILAS MARTÍ

RESUMO Fundadores do grupo Ruptura, estopim do movimento concretista em São Paulo, Waldemar Cordeiro e Geraldo de Barros têm sua obra passada a limpo em duas mostras. Simpatizantes de uma arte acessível a todos, eles viam na tecnologia e na sofisticação dos processos industriais a chance de emplacar essa utopia.

Um era colérico, polemista, autoritário, um "ego se sobrepondo a tudo". O outro era, no máximo, "agudo", um homem sutil e generoso. Mas Waldemar Cordeiro, o "italianão" tipo Marcello Mastroianni, e Geraldo de Barros, sujeito mais afável, estavam juntos na busca por certa utopia.

Líderes do concretismo paulista, Cordeiro e Barros assinaram o manifesto do grupo Ruptura, documento publicado em 1952 que cunhava uma ordem estética para um país em transformação e demarcava uma oposição severa entre "o velho" e o que dali em diante seria "o novo".

"O velho" se manifestava, por exemplo, em "todas as variedades e hibridações do naturalismo". Em contraponto, o "novo" residiria em "todas as experiências que tendem à renovação dos valores essenciais da arte visual" ou na "intuição artística dotada de princípios claros e inteligentes e de grandes possibilidades de desenvolvimento prático".

Eles defendiam uma arte "acima da opinião", uma produção plástica que fosse ao mesmo tempo um "meio de conhecimento deduzível de conceitos". Gritavam sonoro não ao figurativismo, queriam aposentar pintores de salão, preparar o terreno para inaugurar o que seria a modernidade no país.

Esse ímpeto se traduziu em abstrações geométricas, quadros feitos com tintas industriais, campos de cor chapados, sem a marca da pincelada --e muito menos a mão do artista--, ou seja, uma arte de contrastes muito nítidos.

Mas a ruptura em direção à abstração utópica não se deu sem sobressaltos --para usar uma metáfora talvez cara aos artistas, passou longe do que seria o deslizar de uma esteira mecânica ao longo de uma linha de produção. Vale lembrar que Cordeiro e Barros, cada um a seu modo, queriam fundar uma produção plástica calcada no desenho industrial num momento pré-Brasília, pré-milagre econômico, pré-indústria nacional e pré-desenvolvimento.

No fundo, seria uma tentativa ambiciosa, e um tanto tresloucada, de implantar a Bauhaus em solo tropical, adaptar a máxima alemã da forma que segue sempre a função e o racionalismo à latinidade barroca de uma São Paulo ainda digerindo o impacto dos antropófagos glutões da Semana de Arte Moderna de 1922.

POLÊMICOS Augusto de Campos, poeta que aderiu ao movimento concretista na seara das letras, ainda se lembra dos encontros tumultuados do grupo.

"Eram reuniões pouco pacíficas, porque alguns dos integrantes tinham temperamentos muito polêmicos", escreveu o poeta em texto para o livro "Geraldo de Barros: Isso" [Sesc, org. Fabiana de Barros, 364 págs., R$ 110]. "O Cordeiro era muito aguerrido, falante e brigão. O Geraldo já era um temperamento mais quieto."

No plano histórico, Cordeiro, que morreu aos 48, em 1973, foi soterrado pela intransigência que marcou seu discurso. Virou "saco de pancadas" da crítica, nas palavras da pesquisadora Ana Maria Belluzzo, e só nos últimos anos vem merecendo reconsiderações da academia e do circuito artístico.

"Ele ficou muito malvisto como o crítico rigoroso e exacerbado que de fato era na época do concretismo. É tido como um ortodoxo", lembra Belluzzo. "O que as pessoas confundiam no Cordeiro é que ele era muito briguento, tinha um comportamento agressivo, autoritário, barulhento porque era o porta-voz de uma discussão."

Já Barros, morto em 1998, com 75 anos, foi para muitos, como o crítico Lorenzo Mammì, um "artista mais convincente" do que Cordeiro, motor teórico do movimento que é sempre lembrado como "figura centralizadora", aquele "que mais escrevia e mais polemizava".

Duas mostras agora em cartaz em São Paulo opõem os gênios criativos dos dois. Enquanto uma retrospectiva no Itaú Cultural repassa todas as fases da curta carreira de Cordeiro, duas peças fundamentais de Barros são remontadas no Sesc Vila Mariana.

Talvez mais do que o contraste entre opostos, as duas exposições evidenciam uma tentativa de avançar na criação de uma estética seguindo preceitos básicos, regras claras para uma plástica a serviço da modernização do país.

"São artistas inquietos, de uma produção que procura se manifestar em várias frentes", define João Bandeira, diretor do Centro Universitário Maria Antonia, que refez, no começo desta década, a primeira mostra do grupo Ruptura. "Era uma arte afinada com a noção de entrada do país no que se entendia como modernidade."

FÁBRICA Enquanto Cordeiro projetava o moderno nas primeiras abstrações geométricas que criou --elipses, círculos, quadrados e retângulos que flutuam no espaço da tela--, Barros chegou a pensar na utopia de uma fábrica de quadros, em que as peças seriam feitas pelo cliente, seguindo um manual com um repertório de formas e cores preestabelecidas.

Em "Jogos de Dados", série reapresentada agora, Barros retomou a ideia do poema homônimo de Stéphane Mallarmé (1842-1898). Da mesma forma que o francês criou uma tipografia radical, de versos que se alastravam ao acaso pelas páginas, o paulista pensou em 55 conjuntos de placas de fórmica que seriam montados em composições aleatórias.

Fabiana de Barros, filha do artista, lembra que a ideia dele inquietou seus marchands em 1989. "O mercado ficou assustado", conta. "Seus galeristas na época, o Thomas Cohn e a Luisa Strina, perguntaram se ele ia mesmo fazer uma fábrica de quadros. Ele dizia que seria a concretização de uma utopia se uma pessoa pudesse ter o mesmo quadro que o vizinho." A utopia nunca saiu do papel.

Barros buscou levar o manifesto do Ruptura para sua obra artística, criando abstrações geométricas não só em seus quadros de fórmica mas também na clássica série "Fotoformas".

Não conseguiu, no entanto, transformar essas imagens ou mesmo os quadros de seu ateliê-fábrica em bens de consumo de massa como queria. Seu alento foi migrar para o campo do design, criando móveis primeiro na Unilabor, cooperativa em que todos, do artista aos marceneiros, ganhavam exatamente o mesmo salário, e mais adiante na Hobjeto, fábrica onde criou alguns ícones do mobiliário moderno ao longo dos anos 1960.

Na época em que Barros concebia móveis, Cordeiro assinava projetos de paisagismo numa empresa que batizou Jardins de Vanguarda. "Era uma geometria do jardim", analisa Ana Maria Belluzzo. "Ele fazia um quadrado de grama, um retângulo de arbustos, ia erguendo um projeto de transformação real do mundo."

Nas palavras de Fernando Cocchiarale, curador da atual mostra de Cordeiro, seus jardins eram "extensões públicas" de seu "programa de ruptura". "Ele tinha um entendimento daquilo com que se deveria romper na sociedade brasileira para que ela se tornasse moderna", diz Cocchiarale. "Isso se manifesta no paisagismo, no urbanismo, ligados à concepção sociopolítica e ideológica do Cordeiro, que queria um Brasil livre do peso ruralista do passado, um país que se tornasse moderno por meio da indústria."

Enquanto a indústria demorava a chegar, Cordeiro foi modernizando a paisagem da cidade de jardim em jardim. É certo que muitos deles eram encomendas para edifícios modernos ou mansões de abastados, muito distantes da utopia que visava transformar a figura do artista de "gênio isolado e incompreendido", como lembra Augusto de Campos, numa espécie de "operário das artes".

"Ele procurava levar aquela linguagem estrutural, geométrica, limpa, de cores puras, para os ambientes", escreve Campos. "Essa linguagem não representativa tinha um significado de libertação muito grande, projetava a representação visual em campos muito amplos, podia caminhar para o desenho industrial, interferir no ambiente, na arquitetura."

B.B. Mesmo que buscassem certa liberdade nos contornos neutros das formas geométricas, Cordeiro e Barros, também cada um à sua maneira, retomaram a figuração na fase final de suas carreiras.

Depois de inventar jardins e realizar estudos exaustivos de cor e luminosidade, Cordeiro passou a investigar a construção da imagem por meio dos paleolíticos IBM 360, em que criou figuras a partir de um código de sinais gráficos que desenvolveu com a ajuda de matemáticos e engenheiros.

Na peça mais célebre desse período, o artista verteu a imagem da garotinha vítima de uma bomba de napalm na Guerra do Vietnã num "chiaroscuro" feito em impressora matricial, o vulto da imagem falando mais alto do que a própria. No auge da fama de Brigitte Bardot, Cordeiro chamou sua menina de "A Mulher Que Não É B.B.".

Barros voltou a experimentos com a fotografia em chave menos racional na última série que fez em vida. "Sobras" sujeita imagens de suas viagens com a família a uma lógica geométrica mais intuitiva, que não apaga a figura, mas a destaca entre ângulos, linhas e retângulos.

"Eles estavam na mesma barca, tinham aquela utopia", diz Lenora de Barros, filha do artista. "Queriam que a obra fosse um Volkswagen, sem a mão do artista."


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