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De mal com a natureza

A literatura luta com a questão climática

MARCELO LEITE

RESUMO Após povoar a literatura nos anos 2000, o temor do aquecimento global arrefece, mas não se apaga. Em novos romances, protagonistas se mostram entediados diante da percepção de que a catástrofe não é tão iminente como parecia, e falta reencontrar o fascínio com o mundo natural que vigia nas letras entre o séc. 19 e o 20.

Com a devastação de vidas e mercados iniciada pela crise financeira de 2008/9, o foco das angústias culturais parece ter abandonado de vez o campo das dúvidas e interrogações sobre a saúde do planeta. Em seus efeitos sobre o imaginário e a arte, essa fonte jorrou com alguma força no período entre 1997 --ano em que o Protocolo de Kyoto enfeixou as ilusões quanto a uma ação concertada para conter a marcha do aquecimento global-- e 2012, quando elas se esfacelaram em Copenhague.

Nessa época foram concebidas ou lançadas algumas obras de peso sobre mudanças climáticas e questões correlatas, como a novela "A Estrada" (2006), de Cormac McCarthy. O livro ganhou um Pulitzer de ficção e depois serviu de base para o não menos triste e belo filme dirigido por John Hillcoat (2009).

No setor dos "blockbusters" cinematográficos, o tema rendeu em 2004 o desastroso "O Dia Depois de Amanhã", dirigido por Roland Emmerich. Com muita licença científica, a fita conseguiu produzir cenas tocantes, como a de arranha-céus de Manhattan sob a água e a de refugiados americanos cruzando a fronteira do México em busca de abrigo das enchentes e ondas de frio desencadeadas pelo clima ensandecido.

"Uma Verdade Inconveniente", o combinado de documentário e livro distribuído por Al Gore como um sermão planetário, em 2006, provavelmente contribuiu para tornar o político democrata mais conhecido no mundo do que pelo fato de ter ocupado a vice-presidência do país mais poderoso do planeta (e grande empecilho nas negociações internacionais sobre clima) e de ter perdido a eleição de 2000 para o republicano George W. Bush. Gore iniciou uma nova carreira, a de palestrante internacional, e firmou-se na condição de alvo preferido dos "céticos" (negacionistas) do aquecimento global nos Estados Unidos, entre os quais é chamado de "Homem-Ozônio".

A safra literário-climática, no entanto, parece ter minguado. Escassearam os romances sobre os calafrios da Terra, mas não se extinguiram. Tanto é que, neste ano em que o vilipendiado IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima) lança seu quinto relatório com previsões sobre o futuro da atmosfera (o último saiu em 2007), pelo menos duas obras de ficção se dedicam à tentativa de reavivar a chama, com fôlego desigual.

DEFICIT "Mister Iceberger", o apelido do glaciologista Zeno Hintermeier, oferece uma boa indicação do deficit de simpatia que define o protagonista do romance "Degelo" [trad. Kristina Michahelles, Companhia das Letras, 160 págs., R$ 37], de Ilija Trojanow. O título do livro já deixa entrever que trata de um tema desagradável do mundo natural --a mudança do clima--, não muito propício a desanuviar a mente de leitores exauridos por meio decênio de crise global.

Misantropo, irritável e fracassado, Zeno se encontra no menos adequado dos ofícios para alguém com tal índole: conferencista científico de um cruzeiro de cunho turístico-informativo rumo à Antártida, a bordo do MS Hansen.

Seu desprezo pelos passageiros, uma fauna de abonados em busca de imagens e experiências ímpares nos confins austrais da Terra, só é comparável ao que nutre pelos colegas do instituto de pesquisa na Áustria, seu país natal e origem da paixão por glaciares.

A única razão pela qual Zeno aceita o serviço embarcado é porque lhe permite falar sobre geleiras e navegar para o mais longe possível de um casamento em ruínas. Ano após ano retorna para a paisagem enregelada de seu coração. Torna-se amante de Paulina, camareira filipina com quem troca frases banais numa língua estrangeira e o calor declinante do sexo. Até que uma casualidade o põe no cargo de coordenador da expedição, que terminará em desastre.

Com tais ingredientes, "Degelo" parece condenado a servir um prato indigesto. Não é o que acontece. Nas poucas páginas, o autor --um búlgaro que escreve em alemão-- consegue compor um retrato pungente do cientista atormentado, que vê seu objeto de pesquisa (uma geleira nos Alpes) literalmente derreter diante dos olhos, dos estudantes e dos aparelhos posicionados para registrar sua "saúde."

"Uma geleira que está morrendo tem um som diferente de uma geleira saudável, é uma grande barulheira quando vai explodindo ao longo das fendas e, quando aprumamos os ouvidos, escutamos a água derretida correndo e formando lagos subterrâneos, que erodem mais rapidamente o corpo enrugado", anota Zeno, com a objetividade de um exame necrológico. Mas aí acrescenta:

"Éramos como um velho casal, um dos dois estava gravemente adoecido e o outro não podia fazer nada. Não há palavras que possam descrever nossa relação. Conceitos como objeto de investigação', medição de massa', sequência de números' não davam a dimensão correta da minha devoção, eram tão inadequados como a contabilidade' com que, no final do inverno, medíamos a neve velha, como se fosse uma coluna em que se anotam as receitas, e calculávamos o derretimento na coluna das despesas. Essa atividade de somar e subtrair me desesperava."

CIRCUNSTÂNCIA Zeno Hintermeier é o mais novo e desenganado exemplar de uma lista que já se alonga de protagonistas de romances que tomam o aquecimento global por circunstância. Quase todos são homens e se encaixam no figurino do pesquisador, no do militante ambiental, ou em ambos. Contra ou a favor, há personagens para todos os gostos --quase sempre caricatos, porém.

Michael Crichton (1942-2008), pioneiro, no libelo negacionista "Estado de Medo" (2004), lança no ridículo militantes que planejam criar um iceberg monstruoso na Antártida a fim de convencer o público da realidade do aquecimento global. O ativista de Jonathan Franzen, em "Liberdade" (2010), quer salvar os pássaros de um lago perdido nos montes Apalaches e se presta ao papel de inocente útil nas mãos de um capitalista ardiloso, enquanto sua família ruma para a extinção.

Em "Solar" (2010), de Ian McEwan, um físico oportunista e amoral, apesar de detentor de um Nobel, se mete numa arapuca empresarial para produzir energia limpa com a ideia surrupiada de um estudante que morre na sala de sua casa.

O ecologista superdotado de "A Being Darkly Wise" (2012), de John Atcheson, sequestra e abandona nos rincões do Canadá um grupo de mandachuvas de Washington, D.C. na esperança de que a vivência no limiar entre vida ou morte os arranque da catatonia e ponha enfim a lutar pelo clima planetário.

O retrato de Zeno está muito aquém, em termos de sátira. Mais trágico e coerente que o resto da brigada, ele tem consciência aguda da impotência dos pesquisadores diante da mudança climática e de seu motor, a indústria humana. Imola-se, para nada, usando por arma o luxuoso barco que o levara para o amado e frio Sul. Zero de esperança e militância, contra ou a favor do aquecimento global: apenas o piloto automático de uma nave vazia ajustado para dar com a terra em qualquer lugar, numa grande colisão.

FRIO O autor de "Degelo", Trojanow, assim como McEwan, de "Solar", experimentou pessoalmente os rigores do frio polar. No final do romance, agradece pela hospitalidade da companhia norueguesa Hurtigruten, que oferece cruzeiros de dez dias à Antártida.

Ian McEwan, um pouco mais aventureiro, aceitou convite do grupo ambientalista Cape Farewell para embrenhar-se por uma semana no Ártico, com duas dúzias de artistas, a bordo da escuna Noorderlicht (outra embarcação turística norueguesa, mas especializada na região ártica do arquipélago Svalbard).

Essas breves incursões nos extremos congelados da Terra são o eco distante de uma literatura de aventura produzida por exploradores de verdade.

As expedições do norueguês Roald Amundsen e dos britânicos Robert Scott e Ernest Shackleton consumiram anos e várias vidas humanas para alcançar, ou não, o polo Sul. Seus relatos contêm as páginas derradeiras de uma tradição romântica que buscava nos confins mal mapeados do planeta a experiência engrandecedora do contato direto com a natureza, não raro trágico. Ainda hoje tocam os corações de turistas árticos e antárticos aquecidos sob camadas de tecidos térmicos high-tech.

No século 19, não foram poucos os jovens escritores que buscaram no oceano ou no gelo uma fonte de peripécias e temas. Em 1837, Edgar Allan Poe dedicou aos mares do Sul a fantástica narrativa de "Arthur Gordon Pym", seu único romance. Da mesma Nantucket, a ilha de Pym, parte Ismael, no insuperável "Moby Dick" (1851), de Herman Melville. O escritor Nathaniel Hawthorne tentou, mas não obteve o posto de historiador oficial da grande expedição americana de 1838-1842, sob o comando de Charles Wilkes, que estabeleceu ser a Antártida um continente.

Bem mais tarde, em 1898, Joseph Conrad publica "Youth" (juventude), novela curta sobre a malfadada viagem do Judea para o Oriente. Arthur Conan Doyle, leitor de Poe, também seguiu o chamado do mar e do gelo. Aos 20 anos, ainda estudante de medicina, embarcou em 1880 no baleeiro Hope para uma viagem de seis meses para caçar baleias e focas no Ártico.

Conan Doyle não produziu ficção sobre a experiência nas águas frias do Norte, em que quase morreu, após escorregar e cair de uma banquisa. Mas escreveu um curioso diário, em que não deixa dúvidas sobre o caráter transformador da expedição. "Um estranho e fascinante capítulo de minha vida", pode-se ler em sua caligrafia metódica na edição fac-similada do diário, desenhos incluídos, publicada em 2012 pela University of Chicago Press: "Dangerous Work "" Diary of an Arctic Adventure" (trabalho perigoso - diário de uma aventura ártica).

Que o Marlow de Conrad veja a viagem dos sonhos juvenis abortada num navio em chamas e que Conan Doyle termine por consagrar-se com um personagem aventureiro, sim, mas com os pé fincados no terreno sólido da ciência e da lógica --com seu Sherlock Holmes-- podem ser bem os sintomas de um esgotamento do romance da literatura com o mar misterioso e com as provações do frio.

Na passagem do século 19 para o 20, extinguem-se os recantos não mapeados do grande oceano. Em 1911, Amundsen conquista o polo Sul, e a mística da Antártida se desfaz com uma sucessão de expedições semimilitares. A ciência e a logística tomam o lugar da imaginação na tarefa de escrutar os últimos mistérios do mundo, e o pesquisador --já não o escritor-- é o seu profeta.

INQUIETUDE Décadas depois dessa passagem, o planeta volta a ser o emblema de uma inquietude profunda --não mais como protótipo do desconhecido ameaçador, mas como ameaça conhecida, medida e tabulada.

Antártida e Ártico reconquistam o interesse perdido, em particular no caso do segundo, pois dele predizem os modelos do aquecimento global que terá a transformação mais rápida. Existe hoje o risco real de que as águas sobre o polo Norte fiquem desprovidas de sua calota de gelo nalgum verão dos próximos anos --algo que provavelmente jamais ocorreu nos 100 mil ou 200 mil anos de presença da espécie humana sobre a Terra.

A crônica de tais fenômenos portentosos, agora a cargo de cientistas, tem muito de aborrecida. Não há hecatombes à vista. O fato de a temperatura média da atmosfera já se ter aquecido 0,6°C e poder galgar mais de 2°C até o ano 2100 não parece incomodar ninguém. O nível do mar vai subir, mas no ritmo modorrento de dezenas de centímetros --por século. Não espanta que Trojanow e McEwan viajem para os polos e, na volta, componham personas de cientistas cínicos ou irascíveis.

É o preço que paga a literatura quando tábuas e gráficos substituem os frutos da imaginação --"uma faculdade quase divina que percebe tudo com antecedência, à parte dos métodos filosóficos, as relações íntimas e secretas das coisas, as correspondências e analogias", como celebrou Charles Baudelaire em seu tributo a Edgar Allan Poe. Não há lugar para relações secretas e analogias na ciência, assim como o século 21 não parece capaz de produzir um Poe, um Melville, um Conrad --mas fabrica legiões de imitadores de Conan Doyle.

Nem tudo está condenado, todavia. Ainda há espaço para inventar uma literatura do aquecimento global, não heroica, nem agastada, mas que devolva o mal-estar do mundo vivo --da natureza-- à escala das pessoas comuns. Novos passos na direção já tomada por McCarthy com seu perturbador "A Estrada", embora aquela jornada do pai e do menino numa paisagem de cinzas e canibais não esteja direta e didaticamente relacionada com a mudança climática em curso.

ASAS Mais luminoso, mas ainda melancólico, é o romance lançado por Barbara Kingsolver no ano passado, "Flight Behavior" [Harper Collins, 436 págs., R$ 60,90] --o título significa algo como "comportamento de fuga".

Longe dos polos, é sobre os Apalaches --reduto americano da pobreza e do atraso rurais, já frequentado por Franzen em "Liberdade"-- que o aquecimento global abre suas asas. Milhões e milhões de asas: ao tomar uma estrada de lenhador para a cabana em que concretizaria sua primeira aventura extraconjugal (nunca consumada), Dellarobia Turnbow depara com hectares e mais hectares de árvores cobertas por uma pátina cor de fogo, composta por borboletas monarcas.

Os insetos deveriam seguir para o México, destino final de sua migração anual de 3.500 km desde o Canadá para terras mais quentes. Por razões desconhecidas, aterrissam na vizinhança da fazenda em que Dellarobia cria ovelhas com a família do marido e a deslumbram com uma visão que de início toma por manifestação divina. O templo que a moça frequenta segue na mesma linha, e é para conservar esse milagre que a congregação força os sogros dela a sustar o arrendamento da área a madeireiros.

Cedo se desfaz o encantamento. O fenômeno atrai uma horda de curiosos, fanáticos, jornalistas, até pesquisadores. Entre eles, Ovid Byron (que nome), especialista em borboletas que dedicou sua carreira às monarcas e se instala no celeiro da fazenda, onde monta um laboratório. Contrata Dellarobia como auxiliar e tem início uma amizade improvável, da qual ambos sairão modificados.

Ela, a simplória intuitiva, se converte para a explicação mais provável do comportamento anômalo (aquecimento global). Ele, o racionalista metódico, aos poucos revela uma alma apaixonada, sobretudo pela mulher cujo lugar Dellarobia gostaria de tomar.

Não há final feliz. Ovid desmonta o laboratório e parte, as monarcas deixam o lugar, tão misteriosamente quanto chegaram, Dellarobia se separa do marido. Fim.

Sobra uma história eficiente, não tanto para convencer ninguém da importância ou da realidade do aquecimento global, mas o bastante, talvez, para reanimar em alguns leitores a suspeita, se não o desejo, de que ciência, homem e mundo natural possam reencontrar-se em algum ponto à frente.


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