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Arquivo aberto

O disco que eu mesmo lancei

Memórias que viram históriasRio, 1973

JOÃO DONATO

Depois de 12 anos nos Estados Unidos, desembarquei em dezembro de 1972 no Rio de Janeiro, com 40º C à sombra. Que maravilha! Deixara para trás uma Nova York com -5º C e um casamento em que não havia mais entendimento.

Ficaram também minha filha Jodel e um disco inacabado ("Donato "" Arranged and Conducted by Deodato"), porque era véspera de Natal e o estúdio fecharia para férias coletivas, retornando em janeiro. Para mim não dava mais, aquela neve e o coração gelado.

No Brasil, logo me enturmei com antigos amigos, Tom Jobim, João Gilberto, e conheci os baianos Gilberto Gil, Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gal Costa.

Marcos Valle, que andou pelos EUA divulgando a canção "Samba de Verão", me levou para conhecer o Milton Miranda, à época diretor musical da gravadora Odeon.

Era um tempo em que se ouvia MPB na rádio e as gravadoras não economizavam. Por sugestão do cantor Agostinho dos Santos, ficou combinado que eu gravaria o meu primeiro disco com letras, chamado "Quem É Quem".

Recordo-me que foi um corre-corre para "letrar" as minhas canções: acionamos Dorival Caymmi, Paulo César Pinheiro, Lysias Enio (meu irmão), Geraldinho Carneiro, João Carlos Pádua; o próprio Marcos Valle, o produtor do disco, escreveu uma letra. Como eu nunca tinha feito música com letra, decidi não trabalhar em conjunto com os letristas, como faziam Tom e Vinicius. Só distribuí as melodias.

Na confusão, acabei dando a mesma música para vários compositores. Apareceram algumas letras diferentes para "Até quem Sabe", inclusive uma do Caymmi, que achou a do Lysias melhor. A canção tornou-se um dos meus maiores sucessos. Já "Terremoto", música que compus em Los Angeles durante um abalo sísmico, ganhou letra do Paulo César.

Para complicar, a rapaziada da gravadora inventou que eu cantaria o disco inteiro. "The Frog", que ainda não tinha virado "A Rã", com letra de Caetano, era na base do "corogodó, gazainguê, guiringuidim". Eu estava gripado e ficaram gravadas as pausas de respiração com a minha voz anasalada. O pessoal do estúdio adorou.

Aquelas gaguejadas em "Até quem Sabe" também foram naturais. Um ator de novelas veio me perguntar como eu consegui interpretar de forma tão personalizada. "Rapaz, aquilo foi uma garrafa de uísque que eu tomei", expliquei.

"Ahiê", com letra do Paulo César, foi uma brincadeira que surgiu na casa do Lysias. A gente gravava e passava para outra fita. No final de uma dessas gravações, eu mandava uns recados para os amigos. "Silvio, aquela poeira, a poeira da cachoeira, não vai esquecer." "Dá um abraço no Celso, diz para ele comprar cerveja que tá muito ruim aquele bar, aquele bar é uma vergonha." "E se esquecer o que o pai D'Angola te falou, já sabe: ele tá te esperando." Na hora da gravação, eu improvisei e o pessoal delirou. Até hoje eu tenho que dar explicações para as frases soltas.

Caprichamos nos arranjos. Convidamos os melhores: Laércio de Freitas, Dori Caymmi, Ian Guest e o maestro Gaya. Era uma fartura de músicos no estúdio, craques como Hélio Delmiro, Lula Nascimento, Naná Vasconcelos, Bebeto, Novelli, Mauricio Einhorn. Até Nana Caymmi deu uma canja. Fiquei tão entusiasmado com o resultado que escrevi (mas não mandei) uma carta para o João Gilberto relatando as minhas impressões.

Quando o primeiro lote chegou da fábrica, fui até a gravadora. "Como vai ser a festa, o coquetel, a entrevista para a imprensa?", perguntei. "O seu disco não vai entrar neste esquema", respondeu o departamento de divulgação.

Saí de lá atônito e encontrei o meu amigo J. Canseira, compositor de samba, para tomar umas geladas. Desabafei com ele, disse que meu disco não teria lançamento. Ele me deu um conselho que segui à risca. "Sobe no outeiro da igreja da Glória e lança o seu disco. Não esquece de chamar a imprensa."

Arremessei uma caixa de discos do alto do morro, o pessoal das redondezas recolhendo. A jornalista Paula Saldanha fez uma reportagem para a TV. Mas o disco não atingiu grandes vendagens.

No começo dos anos 2000, ele foi remasterizado e comercializado em CD. A revista "Rolling Stone" o classificou como um dos cem melhores discos brasileiros de todos os tempos, lista que também incluiu um instrumental que fiz nos EUA, "A Bad Donato".

Faz 40 anos que gravei "Quem É Quem" e nunca o lancei com um show. Dias 27 e 28 de fevereiro, no Sesc Pinheiros, vou finalmente viver essa alegria.


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