Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

Ilustrissima

  • Tamanho da Letra  
  • Comunicar Erros  
  • Imprimir  

Romance de formação

Como a Rússia viu crescer sua literatura

RUBENS FIGUEIREDO

RESUMO A força da literatura russa provém em grande parte da integração de seus autores ao debate sobre o destino do país. "Antologia do Pensamento Crítico Russo (1802-1901)" exprime em 22 ensaios, de nomes como Tolstói e Bielínski, o embate entre a modernização ao estilo ocidental e o apego às raízes nativas.

Vem de muito tempo a noção de que a literatura possui um estatuto de exceção entre as atividades humanas. Ocuparia uma dimensão tão específica que poderia bastar-se a si mesma e sobre ela não teriam efeitos relevantes os fatores que atuam no restante da vida social. E mais: supor que tais efeitos sejam relevantes significaria diminuir a literatura, empobrecê-la.

Vista do presente, a literatura russa parece que nasceu para pôr em questão essa tese, hoje quase consolidada como norma. Pois a surpresa inicial com a quantidade de obras memoráveis dessa literatura, obras capazes de resistir às transformações históricas e até de ganhar mais força com elas, nos leva espontaneamente a perguntar de onde provém tudo isso.

O livro "Antologia do Pensamento Crítico Russo (1802-1901)" [vários tradutores, Editora 34, R$ 76, 608 págs.], organizado por Bruno Barretto Gomide, permite entender melhor a questão. Podemos perceber que a vida intelectual russa se configurou como uma vasta polêmica em torno do destino de um país em formação, cujos horizontes pareciam abertos para muitas direções e possibilidades.

A literatura russa se integra organicamente a essa polêmica. Daí provém grande parte de sua força e de seu alcance, pois por meio de tais debates ela se enraizou na dinâmica da sociedade. Os autores não viviam isolados em bolhas de uma genialidade inexplicável. O livro, recém-lançado, reúne extratos dessa polêmica e assim abre caminho para refletirmos de modo mais racional sobre o fenômeno da literatura russa.

É UMA CRIANÇA Um ponto de partida pode ser um trecho do ensaio de Vissarion Bielínski, de 1846, presente no volume. Após afirmar que a literatura do país "ainda é uma criança", ele propõe: "Por isso nossa literatura, semelhante a nossa sociedade, apresenta um espetáculo de possíveis contradições, contraposições, extremos e esquisitices. Isso porque ela não se iniciou por si mesma, mas foi, de início, transplantada de um solo alheio para o nosso". Portanto, uma forma social foi transplantada em bloco para a Rússia, de uma só vez. E, dentro dela, veio a literatura.

Essa forma social e seus conteúdos (a literatura é um deles) tendem a ser percebidos como invasores, que tomam o lugar de formações sociais e expressões culturais próprias. Em maior ou menor medida, um sentimento de opressão estará sempre associado a esse processo e à presença de tais formas sociais, mesmo quando descritas como progresso. A modernização, ou seja, a introdução das relações capitalistas, é vivida em geral como um trauma.

Se Bielínski diz que a literatura russa "ainda é uma criança", outro autor, Piotr Tchaadáiev, em 1836, explorara a mesma imagem por outro ângulo: "Assimilamos apenas ideias completamente prontas e por isso aqueles vestígios indeléveis --que se depositam nas mentes por meio de um desenvolvimento consequente do pensamento e criam uma força intelectual-- não sulcam nossas consciências. Crescemos, mas não amadurecemos [...] Parecemos aquelas crianças a quem nunca fizeram raciocinar sozinhas, de modo que, quando crescem, não têm nada de próprio". E mais: "Viemos ao mundo como filhos bastardos".

A noção de "povos avançados" e "povos atrasados", repetidas por Tchaadáiev, faz paralelo com as imagens de adulto e criança, em que a história procede à semelhança das etapas da vida do corpo. Assim, do ponto de vista da Rússia, a história tende a parecer uma corrida desigual em que os países tidos como modelos jamais poderão ser alcançados.

Também por isso chama atenção o ensaio de Lev Tolstói de 1859, cujo título basta para nos situar em outra perspectiva: "Quem Deve Aprender a Escrever com Quem: as Crianças Camponesas Conosco ou Nós com as Crianças Camponesas?". Aqui, a criança --e ainda por cima camponesa-- ocupa a posição oposta e Tolstói inverte a direção da corrida. "Vemos nosso ideal à frente, quando ele está atrás."

EDUCABILIDADE Outro autor, Ivan Kiriêievski, em 1852, arma sua argumentação por uma via diferente: "Havia a opinião geral de que a diferença entre ilustração da Europa e a da Rússia é apenas de grau e não de caráter, e menos ainda do espírito e dos princípios básicos da educabilidade. [...] diziam que antes, entre nós, havia apenas a barbárie, que nossa educação tinha começado apenas a partir do momento em que passamos a imitar a Europa".

O alcance do argumento é maior do que pode parecer, pois ele postula a possibilidade de um caminho alternativo para a sociedade se aprimorar, a partir de formas sociais enraizadas na vida popular.

Vale a pena citar novamente Kiriêievski: "Então será possível na Rússia uma ciência baseada em princípios originais, diferentes daqueles que nos propõe a ilustração europeia. Então será possível na Rússia uma arte que floresça a partir de uma raiz nativa. Então a vida social na Rússia será firmada numa direção diferente daquela que lhe pode transmitir a formação ocidental".

Muito por alto, temos aqui uma ideia do rico e profundo debate entre as tendências eslavófilas e ocidentalistas, que marcou a Rússia no século 19 e, como diz Bruno Gomide, sobreviveu de outras formas no século 20, prolongando-se até hoje. Não admira, pois tal debate exprime com pertinência os dilemas históricos de fundo da Rússia e de países em situação similar.

Cumpre ressaltar que, se Tchaadáiev enfatiza expressões como "educação universal", Kiriêievski prefere ser mais específico e dizer "formação ocidental" e "ilustração europeia". Assim, de um lado, o ocidentalista exprime o sentimento de "atraso" na grande corrida da "civilização universal", e o eslavófilo dá voz ao sentimento de opressão, da coerção de uma forma imposta de fora, em condições sempre desvantajosas para a Rússia. Latente está o questionamento da pretensão de universalidade e de superioridade de formas sociais e culturais, a rigor particulares de uma pequena região do mundo.

De fato, a literatura local seria percebida pelos russos apenas como mais um componente do suposto atraso do país, caso não tivesse se incorporado a tal polêmica. Porém isso se deu menos em função do esforço individual dos autores do que pela pressão das expectativas da sociedade em torno deles.

Dobroliúbov, em seu clássico ensaio "O Que É o Oblomovismo?", de 1859, escrito quando tinha 23 anos, ao passo que argumenta em defesa de "Oblómov" (Cosac Naify, 2012), de Ivan Gontcharóv, discute a relação entre a literatura e a sociedade na Rússia: "De forma alguma concordamos que o poeta que despende seu talento em descrições de imagens de folhinhas e riachinhos possa ter o mesmo significado daquele que, com igual força de talento, é capaz de reproduzir, por exemplo, fenômenos da vida social".

A mesma expectativa pode, no entanto, se manifestar em termos mais sutis. Como no texto de Pável Ánnenkov, de 1856: "A plenitude e a vitalidade de conteúdo não podem ser obtidas de outra forma senão por meio da combinação do talento criativo com uma compreensão ampla e multilateral do tema escolhido [...] cada artista deve estar, em sua esfera, em plena posse dos materiais relacionados ao seu tema". E assim a obra "se torna uma expressão de sua época, o seu melhor testemunho e um importante documento histórico".

EQUIPE "Antologia do Pensamento Crítico Russo" é fruto do trabalho de uma equipe de excelentes pesquisadores e tradutores de russo, de centros universitários de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, como Denise Sales, Sonia Branco, Renata Esteves e outros, com a organização de um grande especialista no assunto, Bruno Gomide. O trabalho de todos eles é um alerta para quem ainda não se convenceu da seriedade e da relevância da universidade brasileira. Por isso me atrevo a concluir este texto com uma pequena polêmica, bem a calhar, à luz do livro aqui apresentado.

Acho difícil subestimar o fato de que o governo dos EUA patrocinou pesadamente durante décadas os estudos de russo em suas universidades, em função de seu combate contra a União Soviética, uma potência em forte ascensão pelo menos até a década de 1970. Essas pesquisas trazem as marcas desse interesse histórico determinado.

Não vejo como supor uma validade científica, universal, para suas teses, seus postulados e a maneira como os dados são arranjados e interpretados nesses trabalhos. Seria muito proveitoso para a universidade brasileira elaborar uma interpretação da experiência histórica da literatura russa desde a perspectiva do Brasil e da América Latina. Um panorama bem diferente deve surgir. Mudanças de fundo e de contorno que nos ajudarão a entender e questionar nossas opções nessa muito suspeita corrida de crianças contra adultos.


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página