Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

Ilustrissima

  • Tamanho da Letra  
  • Comunicar Erros  
  • Imprimir  

O texto abaixo contém um Erramos, clique aqui para conferir a correção na versão eletrônica da Folha de S.Paulo.

Arquivo Aberto

MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Onde estão os negros?

São Paulo, 2001

ANA FRANCISCA PONZIO

"Sinto muito se eu esperava ver negros na universidade. Nunca mais farei essa pergunta."

Com essa frase irônica e dita em tom mal-humorado, Steve McQueen despediu-se da turma de alunos do departamento de artes da Faap (Fundação Armando Alvares Penteado) que, em um dia de abril de 2001, compareceu a um encontro com o artista plástico britânico, que acabava de inaugurar uma exposição no MAM-SP (Museu de Arte de São Paulo).

Na época, aos 31 anos, antes de se tornar o diretor de três longas que ampliaram a difusão de seu nome --o mais recente, "12 Anos de Escravidão", concorre a nove Oscars no domingo que vem--, ele não parecia nada animado com a agenda de compromissos daquela estada na cidade.

Diante dos alunos da Faap, sempre com ar provocador, indagou por que não havia negros naquela plateia universitária e em outras situações, como o vernissage de sua exposição, ocorrido na véspera.

Ao deixar clara sua decepção com o elitismo que vinha presenciando, McQueen desencadeou um clima de desconforto. A maioria dos estudantes reagiu com um "não é bem assim". Alguém disse que ali era a faculdade mais cara do país e que, antes de tirar conclusões, ele deveria procurar conhecer melhor o Brasil, visitar diferentes regiões e se deparar com a multiplicidade cultural do país.

"Vocês estão muito defensivos, parece que pisei em algo sensível. Não estou agitando bandeiras, mas, desde que aqui cheguei, percebo que as pessoas não ficam à vontade quando toco nesse assunto. É como se certas questões, no Brasil, estivessem deixadas de lado, tornando-se invisíveis", disse.

No fundo da sala, eu me surpreendia com aquele primeiro encontro com McQueen. Eu lá estava para escrever sobre o cogitado intercâmbio que deveria ocorrer entre estudantes brasileiros de artes e aquele artista plástico com nome idêntico ao de um dos atores mais famosos do cinema americano, que parecia avesso a bajulações sociais.

O texto me havia sido solicitado pelo No. (No Ponto), publicação virtual então recém-lançada, que deixaria de existir em 2007 (já com o nome No Mínimo). Se bem me lembro, não havia outra chance de contato com McQueen, que não estava marcando entrevistas durante a rápida passagem por São Paulo.

Aquele tumultuado encontro, no entanto, muito revelou sobre o artista, que ganhara o Prêmio Turner dois anos antes e que hoje é mais conhecido como cineasta.

Na exposição no MAM, foram exibidos três vídeos de McQueen, que considerava uma evolução ter abandonado os tradicionais desenho, pintura e escultura para fazer uso da câmera. "Estou interessado em fazer um trabalho que não seja rotulado", explicou, quando eu lhe perguntei sobre sua obra.

Suas videoinstalações ficaram na memória. Feitas a partir de registros nas antigas películas de 16 mm ou super-8, depois convertidos em vídeo, impressionavam pelo virtuosismo com que ele captava os movimentos. "Bear", em preto e branco e com 10 minutos de duração, mostrava dois negros, um deles o próprio McQueen, em uma luta quase ritualística. As imagens, projetadas do teto ao chão de uma parede, numa sala escura, interferiam na mobilidade e no sentido de espaço do observador, estimulando-o a se deslocar e despertando uma noção de ameaça.

"Quero que meu trabalho tenha o efeito de um bumerangue, que vai e volta. Prefiro filmar em preto e branco porque permite evidenciar os contrastes do movimento e os limites esculturais das imagens. A cor representa um excesso, que eu procuro sugar como se estivesse usando uma seringa. Por meio do silêncio que envolve a exibição dos filmes, procuro gerar um estímulo no observador, de maneira que ele fique mais sensível a si mesmo, percebendo sua própria presença e respiração", definiu McQueen.

A fragilidade humana, as situações de encarceramento físico e psicológico e também as injustiças sociais foram as conotações mais fortes deixadas pela obra de McQueen e por suas reações naquele encontro de quase 13 anos atrás. Hoje, dão coerência e alargam a compreensão sobre esse artista, que se diz influenciado apenas pela vida real.


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página