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Ilustrissima

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Imaginação

PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

Tudo na Islândia pensa

VALTER HUGO MÃE

O meu pai declarou: a Islândia pensa. A Islândia é temperamental, imatura como as crianças, mimada. Tem uma idade geológica pueril. É, no cômputo do mundo, infante. Por viver a infância, decide com muito erro, agressiva e exuberantemente.

Não te aproximes demasiado das águas, podem ter braços que te puxem para que morras afogada. Não subas demasiado alto, podem vir pés no vento que te queiram fazer cair. Não cobices demasiado o sol de verão, pode haver fogo na luz que te queime os olhos. Não te enganes com toda a neve, podem ser ursos deitados à espera de comer. Tudo na Islândia pensa. Sem pensar, nada tem provimento aqui. Milagres e mais milagres, falava assim. E tudo pensa o pior.

Eu, instável na convicção de que as palavras salvariam, enfurecia-me por me apertar ainda o peito e a tristeza trazer uma paralisação constante dos gestos e das ideias. Dizer Sigridur não fazia companhia. O meu pai fazia companhia mas não diríamos o nome da Sigridur com tanta matéria que o seu corpo se refizesse diante de nós. Éramos imbecis. Valíamos nada.

Queria uma palavra alarve, muito gorda, uma que usasse todo o alfabeto e muitas vezes, até não se bastar com letras e sons e exigisse pedras e pedaços de vento, as crinas dos cavalos e a fundura da água, o tamanho da boca de deus, o medo todo e a esperança. Uma palavra alarve que fosse tão feita de tudo que, quando dita, pousasse no chão definitivamente, sem se ir embora para que a pudéssemos abraçar. Beijar.

Beija a tua irmã, porque não a entendes mas ela sabe o que faz. Pensei. Está morta, sabe tudo.

O meu pai escrevia os seus poemas e fervia de se pôr no papel. Inventava poemas como se não fosse o seu autor. Pasmava diante deles, incrédulo, com dificuldade em entender de onde surgiam as palavras, como era possível que o explicassem. E eu achava que não explicavam nada. Eu queria olhar para as folhas e ver a Sigridur a correr, a molhar-se nos tanques de água quente. Não queria ver a caligrafia aprumada do meu pai e as suas rimas fracas, esforçadas. Queria que as folhas fossem um barco que nos tirasse a todos dali, ou que abrissem uma estrada segura até ao outro lado do mundo e tivessem rodas velozes e janelas a mostrar as vistas.

Íamos a Bildudalur. Passávamos a estranha marca na montanha e dizíamos que havia sido onde deus se sentara a lavar os pés. Contava-se que deus se sentara pelos fiordes e, de rabo tão pesado, a rocha cedera como se fosse um monte de areia. Outras pessoas achavam que aquilo era do diabo, descansando de andar a acender caldeiras, regurgitando as almas dos infelizes para dentro das crateras fundas dos vulcões, enchendo os vulcões do estranho ódio que o fogo continha. Jurava o meu pai: é um estranho ódio que o fogo contém. Deve vir dos mal mortos. Os zangados.

O fogo odeia. Insistia ele. É essencial que seja assim.

Mas os pés quentes do diabo teriam seco o mar. Eu achava que a marca grande na montanha era do rabo de deus. Porque o mar continuava fresco e sem receios. Muito fundo. O mar era um diamante líquido. Eu respondia: o mar também pensa. O meu pai sorria. Os peixes nadavam dentro de um diamante. No sangue de cristal.

Em Bildudalur, ajeitados para as compras e para as vendas, reparávamos sempre em como as pessoas pareciam limpas. Como se tivessem trabalhos mais lentos, onde se sujassem mais devagar. Estavam sempre mais bonitas. Os rapazes, sendo poucos, eram lindos. Muito perfeitos. Calavam-se na rua. O oposto do Einar. Pensei: sou tão esperta que nunca precisarei de namorar com o Einar. Não te preocupes, mana. Podes morrer feliz. Mas a Sigridur já estava morta. Pouco adiantava que a tentasse convencer da minha integridade ou bizarra esperança.

Pescávamos à linha, no regresso. Atirávamos os anzóis sem isco. Os peixes mordiam imediatamente como se tivessem fome de anzóis. Abundavam para nossa segurança. Pesquei apenas bacalhaus. Quando algum mais pequeno subia, soltávamo-lo. Cuspíamos-lhe na boca ferida e deitávamo-lo à água. Ia avisar os outros de que os pescadores daquele barco eram boa gente. Ensinavam os peixes pequenos a esperar a altura de morder. Era como dizer que lhes ensinavam a altura de morrer.

Não lamentei o sofrimento dos bacalhaus que pesquei a debaterem-se no pequeno tanque. Estavam maduros para nós, maduros para eles próprios, para morrerem. Não seria nada o peixe de que mais gostava, mas comer não se dava a requintes. Era uma tarefa que devia desempenhar-se com humildade.

O pequeno tanque branco, pensei, podia ser uma página. Os peixes debatendo-se podiam ser um poema. Chamei o meu pai. Disse-lhe que os poemas deviam ser assim, como caixas onde estivesse tudo contido e onde, por definição, pudéssemos entrar também. Caixas gigantes, se fosse necessário. Adequadas ao tamanho do que se quisesse dizer. Do que se quisesse guardar. E os peixes como versos que podemos tocar. Pai. Que podemos tocar. Esses versos convencem-me, os outros, não.

Sonhei que me deitava encostada à Sigridur na sua caixa de ir à terra. Encostada, sem grande espaço, apenas o suficiente para assistir, ver, tomar conta. Saber tudo o que aconteceria. Tocar. Ela estendida como um verso.

Naquele dia, uma baleia quase bateu no barco. Entravam muitas para comer os camarões e o nosso mar emparedado parecia até pequeno. Víamos-lhes os rabos a fazer força para que se afundassem em velocidade. O cantinho interior do Arnarfjordur era um guarda-joias culinário. Os camarões guardavam-se ali tão preciosos quanto se encurralavam. Pescávamos em sossego enquanto milhares ou milhões de criaturinhas morriam sem piedade.

Dentro do diamante líquido nadavam criaturas que se matavam umas às outras.


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