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Ilustrissima

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Arquivo aberto

MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Na Glória, encontrei o mestre

Rio, 1943

EVANILDO BECHARA

Aquela tarde de sexta-feira de 1943 seria igual às outras em que meu tio-avô, de folga da labuta semanal, se dedicava a faxinas nos quartos externos do grande quintal de sua residência, numa tranquila rua da Boca do Mato, entre o Méier e o Engenho de Dentro.

Militar que era, servira em mais de um Estado do país, indo sempre com a casa às costas, retornando com lembranças e bugigangas que eram esquecidas em malas e velhos baús. De uns tempos àquela quadra elas precisariam ser despachadas para instituições de caridade. Dessas faxinas eu participava ativamente, ajudando meu tio-avô na tarefa de separar o que podia retornar às malas e o que se destinava aos asilos.

No meio da faxina, ele virou-se para mim com um livro na mão, dizendo: "Você, que quer ser professor de português, fique com este".

Antes do repouso, tomei do livro que me fora ofertado e li: "Lexeologia do Português Histórico" (1921), de M. Said Ali. Estranhei o título, pois esperava ver nele a palavra "gramática", como via sempre nos compêndios que me inculcara meu excelente mestre de língua portuguesa, no então curso ginasial: Odeval Machado.

Se o título não me era comum, o autor passava desconhecido a um ginasiano de 15 anos. Tudo me levou a abrir o livro e ler, com pouco entusiasmo, os primeiros parágrafos do prólogo. Mas, ao chegar ao terceiro, facilmente se confirmou a impressão de que estava diante de uma outra visão sobre a língua.

Eis o trecho que mais me tocou: "Não dissocio do homem pensante e da sua psicologia as alterações por que passou a linguagem em tantos séculos. É a psicologia elemento essencial indispensável à investigação de pontos obscuros. As mesmas leis fonéticas seriam inexistentes sem os processos de memória e da analogia. Até o esquecimento, a memória negativa, é fator, e dos mais importantes, na evolução e progresso de qualquer idioma".

Jamais havia visto o idioma português inserido no plano largo da linguagem e do falante, plano para o qual aquele desconhecido acabara de me estimular a caminhar.

No dia seguinte, corri à Livraria Central e adquiri tudo o que escrevera Said Ali sobre nosso idioma: "Dificuldades da Língua Portuguesa", "Gramática Histórica", "Gramática Secundária", "Gramática Elementar", "Meios de Expressão e Alterações Semânticas".

Após quase um ano dessa descoberta, fui a pouco e pouco entendendo seus escritos, mesmo as "Dificuldades", que, no parecer juvenil, elegi o mais profundo livro de pesquisa entre os muitos que já então integravam minha biblioteca.

Certa feita, assaltou-me uma dúvida no entendimento acerca de um ponto da "Gramática Histórica". Estaria vivo Said Ali? Onde residiria? O catálogo telefônico informou-me que morava no Rio, na rua da Glória. Aventurei o número indicado, e uma voz feminina me garantiu que o professor me receberia no dia e hora aprazados. Esse encontro, eu aos 16 e ele aos 83 anos, está vivo na memória, e marcou um desvio de rota na minha caminhada ao magistério.

Figura serena de religiosidade bíblica, de copiosa barba branca, recebeu-me com simpatia, e desde logo o ouvia dissertando sobre o quanto o nosso idioma precisava de investigadores. A emoção do momento só me permitiu confessar-lhe o sonho de ser professor, apesar da profecia do meu tio de estar querendo abraçar uma carreira de fome e sacrifício.

Na mesma semana, numa segunda visita, lá estava à minha disposição uma pilha de livros selecionados por Said Ali para enriquecer meu arsenal bibliográfico. De 1944 a 27 de maio de 1953, quando faleceu, nossos encontros foram semanais, ocupados com leitura dos clássicos portugueses dos séculos 15 a 19 e digressões sobre temas linguísticos e filológicos.

Do seu mandamento de investigação científica, dois artigos me foram logo recitados: 1)"Nunca aceite uma exemplificação sem que se levante, vá à fonte citada e veja se confere a informação"; 2)"Nunca aceite tranquilamente uma lição só pelo fato de ter sido emanada de um mestre, ainda que esse mestre seja eu. Só aceite quando se convencer".

Esses e outros mandamentos fundamentaram minha formação de investigador. Tudo isto para declarar o quanto devo a esse amigo inesquecível e a esse mestre incomparável, sempre presente nas vitórias que a vida me concedeu.

E paro por aqui, porque mais de uma vez, no meio de nossos encontros semanais, me avisava: "Se você, quando eu morrer, escrever minha biografia, eu, de pirraça, não vou lê-la".


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