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Economia

Pé na estrada

O pensamento sem fronteiras de Albert O. Hirschman

FELIPE GUTIERREZ

RESUMO Economista reconhecido por seus estudos sobre desenvolvimento (1915-2012) tem biografia lançada nos EUA. Livro narra vida marcada pela resistência ao nazismo e ressalta disposição para o trabalho de campo e para a integração de disciplinas, que pode ter lhe custado o Nobel do qual muitos o julgavam merecedor.

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Se uma montadora fabrica carros ruins e caros, os consumidores deixarão de comprá-los, e a empresa irá à falência ou se reinventará. Mas e se o serviço de ônibus de uma cidade for ruim e caro?

No primeiro caso, um mercado saudável e competitivo dá conta de selecionar o que funciona e o que não. No segundo, apresentam-se três alternativas: sair, se conformar ou verbalizar.

"Sair" significa deixar de usar ônibus: comprar um carro, uma bicicleta. Mas nem todos podem sair. "Conformar-se" implica aguentar ônibus ruins e caros. "Verbalizar", finalmente, significa protestar, manifestar-se e exigir dos poderes públicos um preço mais razoável e um serviço mais eficiente.

"Exit, Voice and Loyalty" (1970), o livro mais famoso de Albert Otto Hirschman, trata justamente dessa questão.

Nos anos 1980, Hirschman foi uma aposta para o Nobel de Economia. Ele nunca levou o prêmio, o que é considerado uma injustiça por alguns de seus colegas --entre eles Amartya Sen (que recebeu o reconhecimento da Academia Sueca em 1998). Talvez a falta do prêmio explique por que os obituários não tenham sido pródigos quando ele morreu, no fim de 2012.

Dois fatos pesaram para que Hirschman não levasse o Nobel: em primeiro lugar, ele transitava entre dois campos de estudo, a sociologia e a economia. Além disso, não é possível indicar uma teoria única ou uma disciplina que ele tenha fundado. Sua obra se caracterizou pela diversidade dos temas.

Recentemente, porém, um livro restaurou a importância de Hirschman: o catatau intitulado "Worldly Philosopher" [Princeton University Press, 751 págs., US$ 22,98; disponível em e-book por R$ 88,83]. A biografia, assinada pelo historiador econômico Jeremy Adelman, foi publicada nos EUA no ano passado, e foi motivo de extensas análises na mídia mais refinada dos Estados Unidos.

O "worldly" do título --mundano, no sentido de ligado às coisas palpáveis, materiais-- não é gratuito. As ideias e a vida do biografado foram fortemente influenciadas pelos grandes marcos históricos do século passado.

INTRANSIGÊNCIA Entre os assuntos contemplados na produção de Hirschman está a falta de diálogo entre economistas. Seu penúltimo livro, de 1991, saiu nos EUA com o título de "A Retórica da Reação" a contragosto do autor, que preferia "A Retórica da Intransigência" (no Brasil, o volume, publicado pela Companhia das Letras, foi chamado dessa forma). Era um ensaio sobre como e por que conservadores e liberais fazem teorias para seus próprios grupos, com a finalidade de reafirmar suas certezas.

Assim como o mote de "Exit, Voice and Loyalty", o tema ganhou atualidade --é só navegar pela internet brasileira para ler grupos se acusando de "keynesianos de galinheiro" ou "cabeças de planilha".

Mas a ideia mais conhecida de Hirschman não é nenhuma destas. Trata-se de uma metáfora: a da mão escondida.

O economista apontava para o conjunto de consequências imprevisíveis de uma ação do governo. Por exemplo: um programa de transferência de renda tem como propósito tirar pessoas da situação de pobreza extrema. A mão escondida é o efeito colateral: o comércio ganha força, a economia gira, novos negócios são abertos, mais impostos são arrecadados.

Trata-se, claro, de um aceno à mão invisível do mercado --aquela mesma que leva à falência uma montadora de carros ruins e caros.

Em meio à grande variedade de temas e objetos de estudo, porém, quando se fala no nome de Hirschman, pensa-se ainda nos desenvolvimentistas. Não é um despropósito: ele foi um dos primeiros acadêmicos de universidade norte-americana a se debruçar sobre o tema dos países pobres, justamente na época em que o assunto ganhava temperatura, nos anos 1950.

O economista foi muito influente na América Latina. Ajudou a fundar a Cepal e também o Cebrap, no Brasil, além de "think tanks" nos mesmos moldes em outros países da região.

Hirschman era a favor da distribuição de renda e de um Estado de bem-estar social, mas era contra a revolução com que, nos anos 1950 e 1960, boa parte da esquerda latino-americana sonhava. Para ele, reformar o Estado lentamente, com avanços e retrocessos, era o melhor caminho.

O estudo do desenvolvimento não foi uma escolha totalmente espontânea: ele viveu na Colômbia durante os anos 1950 porque não conseguia emprego nos EUA.

Hirschman não sabia, mas esteve na lista negra do senador Joseph McCarthy. Visto como uma ameaça ao capitalismo, não conseguiu trabalhar em órgãos governamentais ou universidades do país que adotou como nação. Mas não era a primeira vez que ele era perseguido pelos donos do poder.

NOVO COMEÇO O economista nasceu em uma família de judeus de Berlim em 1915. Durante a juventude, integrou um grupo de comunistas da capital alemã chamado Neu Beginnen (novo começo). Foi dessa parte de sua história que os anticomunistas norte-americanos tiraram suas suspeitas, desconsiderando o fato de que Hirschman havia abandonado o comunismo ainda adolescente.

Em 1933, seu pai, um cirurgião, morreu. No mesmo ano, Hitler assumiu o poder, e a Alemanha passou da República de Weimar para o Terceiro Reich. O jovem fugiu do país, ao qual só voltaria depois de mais de 40 anos.

Fixou-se em Paris, onde começou a estudar administração. De lá, alistou-se para lutar na Guerra Civil Espanhola, na qual foi ferido. Não há detalhes sobre o episódio, que ele não comentava nem mesmo com sua mulher Sarah --eles foram casados por sete décadas.

Desiludido com as brigas e sabotagens entre grupos de legalistas na Espanha (os stalinistas chegaram a executar membros do Poum - Partido Operário de Unificação Marxista), mudou-se em 1935 para Londres, ingressando na London School of Economics.

Passou ainda pela Itália para estar com a irmã, Eva, e um grupo de intelectuais independentes, como o filósofo antifascista Eugenio Colorni (1909-44), que seria para ele uma grande influência.

Segundo a biografia de Adelman, Hirschman e Colorni tinham quase uma obsessão para "provar que Hamlet estava errado".

O personagem da peça fica tão paralisado pela dúvida que não consegue agir. Portanto, se autoquestionar, colocar as próprias certezas em xeque nos deixa em um estado de catatonia. "Provar que Hamlet estava errado" era provar que, na verdade, é bom ter dúvidas, elas fazem com que as posições sejam revistas.

Porém, quando se trata de um governo, e não de uma pessoa, o ideal é que ele tenha como revisitar suas posições, mas sem que essas voltas o imobilizem.

Hoje a ideia é mais nítida do que quando foi formulada, em plena Segunda Guerra, quando nações eram governadas por dogmas que determinavam como poderosos e povo deveriam agir.

Da Itália, voltou à França. Lá trabalhou em uma rede que tinha como objetivo salvar europeus perseguidos pelo nazismo, ajudando-os a sair da Europa. Conseguiram levar às Américas um número estimado entre 2.000 e 4.000 de judeus e antinazistas --entre eles, gente como o pintor Marc Chagall e a filósofa Hannah Arendt.

Hirschman tinha várias funções nesse círculo: falsificava documentos, ajudava perseguidos a cruzar fronteiras, auxiliava com disfarces. A certa altura da Segunda Guerra, o próprio Hirschman acabou fazendo uso da rede e foi para os EUA, onde voltou a estudar e se alistou no Exército.

Assim, antes do fim do conflito, estava de volta à Europa, dessa vez com os soldados americanos. Ao alistar-se, ele tinha noção de seu potencial para ser uma cabeça nos serviços de inteligência, mas acabou trabalhando como tradutor.

Fluente em alemão, francês, italiano e inglês, ele foi o tradutor do primeiro grande julgamento de um nazista de alta patente, Anton Dostler, que foi executado: coube a Hirschman comunicar ao condenado que seria morto por um pelotão de fuzilamento.

De volta aos EUA, esteve no grupo responsável pelo Plano Marshall, que reergueu a Europa durante o pós-Guerra. Mas sua vida profissional não deslanchou, pois ele passou a topar com as dificuldades do macarthismo.

Foi quando, em 1952, chegou um convite para ir à Colômbia, a fim de trabalhar como consultor. Ao aceitar, Hirschman deparou com um país que tentava sair de uma situação plenamente agrária e de atraso para tentar alcançar os que já estavam plenamente industrializados. Ele trabalhou por lá durante os anos de guerra civil conhecidos como "La Violencia" (1948-1958), com conflitos que amontoaram corpos no campo.

Desse momento em diante, a produção intelectual do estudioso esteve ligada aos países em desenvolvimento, especialmente os da América Latina.

Hirschman entendeu bem a chamada "síndrome de vira-latas" e a necessidade que os latino-americanos temos de buscar aval de intelectuais do mundo desenvolvido para reconhecer nossos próprios méritos. Ele não se sentia confortável na posição do "gringo sabido" que viria de um país rico para ensinar como fazer as coisas.

Já livre do macarthismo, ele voltou aos EUA e, mesmo sem gostar de dar aulas, teve empregos nas mais prestigiadas universidades de lá, como Harvard e Princeton.

No fim dos anos 1950 e durante os 1960, começou a circular pela América Latina --colaborou com Salvador Allende, com o economista argentino Raúl Prebisch e também com alguns brasileiros, como Celso Furtado e um então jovem sociólogo chamado Fernando Henrique Cardoso, que ficou embevecido ao ouvir do "gringo sabido" que os dois pensavam de forma parecida.

A amizade entre o futuro presidente e Hirschman durou décadas --o economista foi um dos poucos presentes no almoço de pré-posse de FHC, no dia 1º de janeiro de 1995. Há um ano, o ex-presidente publicou na "Ilustríssima" um artigo relembrando alguns momentos com o amigo, que morrera poucos meses antes, após um longo tempo agonizando sem memória ou consciência.

José Serra também conviveu com o economista, como assistente na Universidade de Princeton, como registra o livro de Jeremy Adelman. Hirschman chegou a acionar sua rede de contatos no governo norte-americano para ajudar Serra a se desembaraçar de militares que o detinham momentaneamente no aeroporto. Segundo Adelman, o ex-governador nunca soube que Hirschman havia se movimentado para ajudá-lo.

Apesar de não ser mais tão influente quanto no passado, o pensamento de Hirschman deixou uma herança notável --ainda que talvez indireta-- na atuação de alguns economistas atuais. É o que se percebe, por exemplo, nos trabalhos da francesa Esther Duflo e seu laboratório de estudos sobre pobreza, que, num estilo semelhante ao de Hirschman, combina experiência em campo com teoria.

Estudiosos como Duflo seguem um traço peculiar de Hirschman, cuja experiência de campo, visitando países em desenvolvimento, difere bastante dos testes que os economistas de desenvolvimento fazem hoje.

Hirschman, o livro reitera, teve uma trajetória única --duas guerras, fuga do país de origem e, depois, do continente, perseguição do macarthismo e a vida na América Latina. A combinação dessas mudanças com uma inquietude intelectual fez dele um pensador de múltiplos temas --se não levou o Nobel, conseguiu verbalizar ideias sem que a dúvida o paralisasse.


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