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Imaginação

PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

História do dinheiro

Fragmento de um romance

ALAN PAULS TRADUÇÃO JOSELY VIANNA BAPTISTA

A pergunta, mais uma vez --como no caso da apólice do seguro de vida que sua mãe o faz assinar uma semana antes de ir para a Europa por um mês e meio com seu segundo marido--, é por que quatro milhões e não dois, sete ou cento e vinte e cinco mil. Como faz a cúpula guerrilheira, uma vez capturado o objetivo, como se diz no jargão militar que faz furor na época, para calcular o montante a pedir? Que critérios seguem, a que estimativas se atêm, como deduzem essa peripécia contábil? Se são todos ricos, por que por alguns pedem setecentos mil e por outros dois milhões e meio? Pedem o que acham que o inimigo pode pagar ou pedem o que necessitam para se reabastecer de armas, equipamentos de comunicação, veículos, esconderijos, ou para distribuir alimentos e roupas em favelas e em áreas rurais remotas, ou para planejar ações futuras? Só existe uma coisa mais incalculável que o preço de uma vida humana: a arte. Toda vez que lê os jornais e topa com uma dessas cifras exorbitantes sente um primeiro impulso de alegria, uma febre eufórica. Pensa na pobreza, na miséria sem nome, nas necessidades atrozes que os sequestrados e as corporações que representam impõem direta ou indiretamente a parcelas cada vez mais crescentes da sociedade, e toda cifra lhe parece pouco, toda quantia ridícula. Pois se não há dinheiro que possa compensá-las! O segundo impulso é um pouco diferente: uma vacilação sutil, impregnada de certo mal-estar. Volta a ler a cifra e pensa: se ao menos houvesse uma lógica. Se ao menos seguissem o exemplo do terra de ninguém Godard --como o batiza na tarde em que, afundado numa poltrona rangente da cinemateca, esticando o pescoço ao máximo para eludir as nucas afro do casal a sua frente, vê pela primeira vez a cena das execuções na piscina coberta de "Alphaville", com os tristes executados de terno e gravata caindo na água e o cortejo de "pin-ups" de biquíni mergulhando atrás deles para escoltá-los até a borda da piscina, e quando sai do cinema, com a solenidade solitária que têm as decisões tomadas aos quinze anos, decide que nunca mais repetirá a falácia que todos repetem, o francês Godard, o suíço Godard, até mesmo o franco-suíço Godard, a tal ponto atribui à fronteira que separa a França da Suíça tudo o que admira nele, que é tudo, dos óculos fundo de garrafa às barras viradas das calças, justas, curtas demais, passando por suas mulheres, principalmente suas mulheres, e essas rajadas de música que irrompem como pancadas de chuva cortam ao meio as imagens de seus filmes e retornam ao silêncio--, o terra de ninguém Godard, que quando termina de rodar "Tout Va Bien", o panfleto anticapitalista que filma com Jean-Pierre Gorin, e senta para pensar, como sempre que termina um filme, mas agora mais, justamente porque o que filma agora não são filmes, mas panfletos anticapitalistas, quem diabos pagará uma entrada de cinema para vê-los, que público real pode haver para essa obra-prima do kino-pravda "slapstick" que tem Jane Fonda e Yves Montand como reféns em pleno fogo cruzado de um conflito sindical, o teto que estabelece é de cem mil espectadores, os mesmos cem mil, pensa, que vão ao enterro do militante maoísta Pierre Overney no Père Lachaise, assassinado às portas da fábrica Renault de Billancourt --sem que haja um só irmão Lumière para registrar o episódio-- pelo segurança Jean-Antoine Tramoni. Sete quilômetros de cortejo fúnebre, cem mil parentes (entre eles o filósofo mais feio do mundo, o que jura de pés juntos que leva tudo de que precisa para viver nos bolsos do paletó), cem mil poltronas ocupadas em Paris.

É isso, só isso, que ele pede quando a vertigem o aflige: uma economia. Não importa qual. Alguma coisa que responda de algum modo à pergunta por que quatro milhões e não dois, vinte ou quinhentos mil. Roubar um banco não. Assaltar uma delegacia, um destacamento militar ou uma fábrica de armas também não. Mas todo pedido de resgate por um sequestrado tem de se fundamentar em alguma coisa. Garrafas de Coca-Cola, carros, metros lineares de aço, ações, propriedades não declaradas, contas bancárias no exterior, cabeças de gado, hectares de latifúndio... Alguma coisa! Senão, pensa, se não há um metro-padrão, um princípio de valor que sirva de medida para o resgate --por mais louco que seja--, não há outro remédio senão medi-lo pelo pior: em vida humana. E, nesse caso, como saber se o que se pede é muito ou pouco?

Como saber no caso da mãe, por cuja vida, se a perdesse, a companhia de seguros oferece cem mil dólares --cem mil verdes, como os denomina agora a voz das ruas, inaugurando o ecologismo financeiro que impregnará as conversas públicas e privadas ao longo das duas décadas seguintes-- "pagáveis", como consegue ler na apólice antes de assiná-la, "contra apresentação do correspondente atestado de óbito". Por outro lado, pagáveis como? Em seu equivalente em pesos? Em dólares? E, se for em dólares, a que câmbio? Ao câmbio oficial, que em abril de 1975 pede quinze pesos e cinco centavos por dólar? Ao câmbio paralelo, que pede mais do dobro, trinta e seis e quarenta e cinco? E se for o paralelo, paralelo de quando? De julho de 75, quando nas chamadas cuevas onde se decide a vida secreta do dinheiro pagam por dólar sessenta e seis pesos e cinco centavos? De setembro, quando já pagam cento e dez? E se fosse em pesos, que pesos? Os de antes de junho de 1975 ou os de depois, quando a passagem de ônibus já subiu cento e cinquenta por cento e um litro de gasolina uns cento e setenta e cinco? Como acontece com todo mundo, ele tem dificuldade para entender como as cifras de repente vão lá para as nuvens, e os zeros, nas quitandas da cidade, nesses papelões violeta ligeiramente côncavos onde os verdureiros marcam com giz branco o valor de suas mercadorias, se multiplicam de maneira enlouquecida, como se designassem magnitudes extraterrestres --anos-luz, por exemplo-- ou extensões de tempo geológicas, e não o preço de um pé de alface, até que de um dia para o outro uma lei põe um freio neles e os corta pela raiz, e o que antes custava dez mil pesos agora custa um. Mas ele tem mais trabalho ainda para entender como os zeros se multiplicam ao avaliar a vida de sua mãe e a do marido de sua mãe --em viagem, além do mais, e na maior tranquilidade, a bordo da Giulia conversível que alugam em Portofino--, sem que esse incremento exponencial signifique necessariamente que valham mais, que sejam mais caras, que seja preciso pagar mais dinheiro por elas caso um acidente as liquide.


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