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MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

A guia de Xangai

China, 1974

MARIA BONOMI

Era proibido, mas, em 25 de abril de 1974, eu celebrava, em Xangai, a Revolução dos Cravos, que eclodia em Portugal. Agregada pelo diplomata Azeredo da Silveira, futuro chanceler e colecionador entusiasta de meu trabalho, estava em viagem oficiosa de representação do Brasil à China, ainda liderada por Mao Tse-tung e Chou En-lai, que visitamos em Pequim. Eu realizava o sonho de buscar as fontes da gravura na xilografia milenar chinesa, a "arte chim da xilo", conforme o poema que Haroldo de Campos me dedicou.

Eu tinha recusado uma sala especial na Bienal de São Paulo de 73 e optara por exibir o curta "Detritos", que fizera com Thomas Farkas, em mais um protesto contra a ditadura, à qual me opus desde o início. Ao receber o prêmio de melhor gravador nacional, aproveitei a presença do marechal Castelo Branco para lhe entregar um documento que pedia a revogação da prisão preventiva dos professores Mário Schenberg e Fernando Henrique Cardoso, entre outros.

Entramos na China a pé, a partir de Hong Kong, como hóspedes espartanos do país. Nosso grupo era bastante heterogêneo: médicos, funcionários graduados, Baby Cerquinho (primeira mulher de Caio Prado Júnior) e vários empresários. Em Xangai, Ian Schultz (do Banco Francês e Brasileiro) lembrou-me de que estávamos hospedados no hotel que tinha sido cenário de "A Dama de Xangai", de Orson Welles, com Rita Hayworth.

Viajamos de ônibus, trem e avião por todo o espaço permitido. Das paragens surpreendentes nasceram alguns de meus trabalhos: da Grande Muralha, a xilografia "Muro Muralha Passo"; do encontro com uma enorme pedra de jade, esculpida por quatro gerações, surgiu "Pedra Robat"; na mesma noite em que visitamos Hangzhou (cidade às margens de um lago a cerca de 180 km de Xangai), comecei os desenhos da litografia "Hangzhou", que viria a ser um grande sucesso entre colecionadores. Eu não parava de desenhar.

Apesar do encantamento, algo não estava dando certo. Eu ali me encontrava para ver a xilografia milenar da China e descobrir como e onde era praticada. Quais os artistas, quais os temas? Silêncio. Os roteiros impostos não respondiam. Certamente existiriam vozes e linguagens além do ateliê socializado dos especialistas em pássaros, árvores, arados, punhos cerrados etc. Não podia ser só aquilo.

Debaixo do sol do meio-dia, sentei no túmulo de um poeta famoso no cemitério de Xangai e anunciei que entrara em greve de fome. Não me moveria de lá até que pudesse conhecer artistas originais que praticassem a linguagem da tradição de origem chinesa livremente, como eu. Grande rebuliço. Sem entender, os companheiros de viagem se foram para mais uma cerimônia do chá e passeios.

Anoitecia. Eis que surge uma guia uniformizada e, em português (brasileiro) mais do que perfeito, se apresenta como alguém que entendia as minhas solicitações, prometendo que tudo faria para me ajudar. Não lembro seu nome, mas apenas o número bordado na gola em fios de prata: 42. Tinha um aspecto confiável, talvez a minha idade. Escoltou-me para o hotel, de bicicleta, conversando fluentemente. Até cantou canções do recente Carnaval brasileiro.

Prometeu voltar no dia seguinte. Reapareceu cedo, informando que naquela tarde eu teria um encontro "privado" com dois artistas gravadores "autores", jovens mestres "independentes", os "únicos do país". Exultei com o resultado do meu protesto. Reconhecida, comecei a falar pelos cotovelos sobre o Brasil: estávamos numa ditadura ferrada, pessoas presas, torturadas, mortas, exiladas e perseguidas, sobretudo artistas e intelectuais. Ela tinha provado ser uma amiga, eu podia me abrir.

Enquanto falava, 42 começou a brincar com as roupas de minha mala. Disse-lhe para pegar o que quisesse. Foi discreta, mas levou o quanto pôde ocultar nos bolsos.

Fui conduzida por ela a um local distante, onde me foram revelados Wu Biduan e Gu Yuan (1919-1996) --que se tornaram grandes mestres da xilogravura chinesa--, e aconteceram perguntas e respostas profissionais da mais alta qualidade. Daí resultou minha série "Como se Fossem Palavras", cinco imagens xilográficas de ideogramas aleatórios. Agradecida, me despedi de 42 prometendo lhe enviar discos de Chico e Bethânia.

De volta ao Brasil, fui convidada a proferir uma palestra sobre a arte da China contemporânea no MAM de São Paulo, então sob direção de Diná Lopes Coelho. Como é notório, na ocasião fui aprisionada, encapuzada e amarrada sob mira de revólver e atirada em um carro que percorreu a cidade por horas. Fui parar no quartel da rua Tutoia para os interrogatórios.

No meio da noite, um carcereiro armado me lançou uma pasta: "Tome e leia. Você vai pegar 30 anos de cadeia". Em pânico, abri o documento e pude ler, quase em transcrição literal, todas as confidências que fizera à guia 42 no hotel em Xangai, sublinhando, naturalmente, os detalhes da minha versão da situação política e militar do nosso país desde 1964: 42 sempre soube o que queria.


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