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MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

O postal estradeiro de Kerouac

Northport-Curitiba-Rio-São Paulo-Rio-Nova York-Rio, 1959-2014

ROBERTO MUGGIATI

EM 5 DE DEZEMBRO de 1959 publiquei no lendário "sdjb", suplemento dominical do "Jornal do Brasil", que à época saía aos sábados, um artigo de página inteira intitulado "Jack Kerouac e as crianças do bop". Mandei uma cópia do suplemento ao escritor, aos cuidados de seu agente literário.

Três semanas depois, para minha surpresa, recebi em Curitiba --onde nasci e morava-- um cartão-postal dos correios dos EUA, datilografado e assinado pelo autor de "On the Road". Chocou-me, menos do que Jack ter tropeçado no meu sobrenome (Mliggiati), o erro de ortografia em "portugese". Jack vivia na época o seu momento de glória na mídia: além de jornais e revistas, seu rosto se tornara familiar nos "talk shows" da TV.

Guardei o cartão entre as páginas do seu livro "Mexico City Blues" e parti para o mundo. Depois de dois anos de Paris --com uma bolsa de jornalismo-- e três de Londres --trabalhando na BBC--, pousei no Rio e comecei a trabalhar na "Manchete". Meus pais mandaram minha biblioteca de Curitiba, incluindo "Mexico City Blues", com o cartão entre suas páginas. Muito tempo depois, folheando o livro, reli o cartão com mais atenção:

"Caro Sr. Mliggiati

Recebi a página do jornal e lastimei não poder ler português tão bem quanto espanhol mas captei 50% do seu significado --é apenas lamentável que o senhor cite o que outros escritores com outros interesses dizem sobre mim ou a geração beat-- eu lhe asseguro que a geração beat é um movimento honesto e, se a crítica é Para onde vocês estão indo?' a resposta é Nós chegaremos lá'. Naturalmente. Um dia visitarei o Brasil e o verei, meu caro senhor, e anseio por isso. Se não for a nenhum outro lugar, irei ao Brasil. Enquanto isso continue o seu trabalho e tenha fé em sua própria alegria ou talvez em sua tristeza (na tradição latina)...Laurence (sic) Ferlinghetti e Allen Ginsberg estão indo a Santiago Chile em fevereiro e visitarão o Brasil também... Mas eu vou ficar em casa para escrever um novo romance. Salud, hombre, Jack Kerouac."

Reparei num detalhe importante: o cartão fora postado na agência de correio de Northport, onde Kerouac morava com a mãe, Mémère. O carimbo indicava a hora e o dia: 6:30 PM, December 24, 1959. Pensei: o velho Jack não teria nada melhor a fazer na véspera de Natal do que ir ao correio mandar um postal para Curitiba?

Em 1992, topei com uma nota no suplemento literário do New York Times: Ann Charters, a maior especialista em geração beat, pedia colaborações para um livro de correspondência de Kerouac que pretendia editar. Enviei-lhe uma cópia do cartão e recebi um simpático agradecimento. Tive de esperar até 1999, quando saiu o segundo volume, "Jack Kerouac: Selected Letters 1957-1969" (Penguin). À página 237, estava o texto do cartão de Kerouac, com a anotação de Charters:

"Na véspera do Natal de 1959, Kerouac colocou um disco de "A Paixão segundo São Mateus", de Bach, e sentou-se para escrever ao velho amigo Allen Ginsberg. (...) Escreveu também um cartão para um fã no Brasil chamado Roberto Muggiati, que comentou: Uma data significativa para um católico como Kerouac. E pensem na sua solidão na véspera de Natal!'".

No ano passado, numa crise de desapego, resolvi submeter o cartão a um leilão de manuscritos e livros raros da Sotheby's de Nova York. O cartão não foi arrematado. Agora, em maio de 2014, um jovem casal amigo --Patrícia e Raupp-- o resgatou para mim.

Calculei as distâncias que o cartão de Kerouac viajara: Northport-Curitiba, Curitiba-Rio, Rio-São Paulo-Rio (trabalhei dois anos na capital paulista, na equipe inicial da "Veja"), Rio-Nova York-Rio. O pequeno retângulo de cartolina, datilografado talvez na mesma máquina que escreveu "On the Road", assinado e corrigido com caneta esferográfica azul, depois de percorrer 25 mil km, voltou teimosamente a minhas mãos --e a repousar entre as páginas amarelecidas de "Mexico City Blues".


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