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Sete a um - Crônica

Uma crônica do 8 de julho

Aniversário brasileiro

INGO SCHULZE

Uma história sobre o jogo? Num jornal alemão, li que a probabilidade do resultado estava na relação de 1 para 7.000. Minha história tem uma probabilidade maior, mas começa com três acasos.

Primeiro: o dia 8 de julho era o último dia de aulas antes das férias de verão, e minha filha mais velha, Clara, fazia 12 anos. Ela quis ganhar uma nova mochila de presente, porque agora entrará no ginásio, e uma bandeira brasileira. Ela ama o Brasil por causa das araras, ela sabe muito sobre araras e seu quarto é uma espécie de gabinete de araras. Ela inclusive me cobra por jamais tê-la levado ao Brasil --ao Rio que seja, se a Manaus não dá.

O segundo acaso: minha namorada, de quem ela ganhou a bandeira do Brasil, fez uma palestra sobre a literatura alemã contemporânea à tarde, e leu --afinal de contas, todo mundo está falando de futebol, e apenas de futebol-- um trecho do meu romance "Vidas Novas", no qual tento descrever a improbabilidade, ainda assim lógica, dos acontecimentos que levaram à queda do Muro de Berlim, 25 anos atrás, comparando tudo com um jogo da Copa dos Campeões da Europa de 1986.

Nas quartas de final, o Dínamo de Dresden havia ganho por 2 x 0 em casa, contra o Bayer Uerdingen e, em Uerdingen, o primeiro tempo terminara em 1 x 3 para o Dínamo, que, no entanto, perdeu por 7 x 3 e acabou desclassificado --seis gols num só tempo de jogo!

Terceiro acaso: no dia 8 de julho de 1990, a Alemanha (Ocidental) ganhou a decisão da Copa do Mundo contra a Argentina. Um pouco mais tarde, quando o conceito enganador do "fim da história" foi popularizado por Francis Fukuyama, a vitória na Copa do Mundo foi adotada como a metáfora do fim da história alemã.

Franz Beckenbauer, na época treinador da seleção da Alemanha, disse mais ou menos o seguinte: que lamentava muito pelo mundo, mas que agora, "sorry", quando os talentos futebolísticos da Alemanha Oriental ainda se juntariam aos ocidentais, a Alemanha seria imbatível por um bom tempo.

Clara e eu fomos a um bar de tapas, distante apenas alguns metros da porta de nossa casa, e achamos um lugar na terceira fila diante da televisão, protegidos da chuva por uma marquise. Clara desdobrou sua bandeira do Brasil. Os garçons contemplaram a cena com gosto. Dois deles vestiam a amarelinha da seleção brasileira. Para desgosto de outros, que já acenavam havia eternidades, nós fomos servidos imediatamente.

No jogo do Brasil contra o Chile eu torci pelos chilenos, no jogo da Alemanha contra a Argélia, pelos argelinos. Quando se trata de clubes, eu torço pelo Borussia Dortmund --sempre! Sempre mesmo! Mas, no caso da seleção alemã, sou um torcedor incerto. Dessa vez eu me inclinava a torcer pela Alemanha, mas não podia nem queria deixar que isso fosse notado assim de cara. Ninguém, afinal, gosta de deixar a filha sozinha.

Logo percebemos que valeu a pena ter ido, os ataques se sucediam de um lado a outro. No escanteio alemão, o narrador perguntou: "Onde está Hummels?... Com Dante!" --que diálogo literário! Mas então acabou sendo Müller o autor do gol. Todos vibraram, menos Clara. Eu senti que meu braço direito estremeceu, minha mão se fechou num punho.

Clara sorriu, tirou a bandeira do colo e a estendeu em torno dos ombros. Agora a seleção alemã afundaria sob os ataques maciços e furiosos dos brasileiros. A vantagem precoce não era boa, era boa apenas para Müller! E então o 2 x 0.

Um garçom de camiseta amarela ficou em pé ao lado de Clara, viu o replay e sacudiu a cabeça! Depois da derrota de seus espanhóis por 5 x 1 no primeiro jogo contra a Holanda, nada mais poderia abalar Clara. "A noite está longe de chegar ao fim!", tentei encorajá-la.

O que aconteceu em seguida não tinha mais nada a ver com futebol. Ou até era futebol, mas futebol de um tipo inacreditável. Eu por acaso já não vivenciara isso um dia --em 1986? Seis gols num só tempo de jogo? Quer dizer que tudo aquilo não passava de uma repetição, de mais uma tragédia anunciada? E não fazia pouco mais de um ano que a Alemanha ganhava de 4 x 0 contra a Suécia? E o jogo terminou 4 x 4!

Talvez eu esteja apenas imaginando tudo isso: mas a alegria com os três gols que vieram a seguir era cada vez mais intensa, os gritos cada vez mais altos, mas também mais breves. A surpresa era demasiado grande.

Mais tarde, no 4 x 0 marcado por Kroos, aprendi a controlar minha mão direita. Clara ajeitou seu manto e por isso acabou erguendo a bandeira um pouco. Alguém aplaudiu. "Agora é que vocês vão ver!", exclamou uma voz de homem. Jamais vi jogadores tão perdidos como naqueles minutos. Pensei que a qualquer momento o jogo seria interrompido. Já não era mais justo o que estava acontecendo. Aquilo não tinha mais nada a ver com esporte, era uma aniquilação. Por que não fazem uma pausa? Escrevi um torpedo à minha namorada: "Será que isso também não é terrível, por um lado?" Antes mesmo de enviá-lo, o quinto gol foi marcado. Eu passei a temer por Clara. "Ainda está torcendo pelo Brasil, filha?", perguntei. "Pai! Mas é claro!"

Estranho o fato de eu achar bom vê-la sentada ali com uma bandeira brasileira; se estivesse com uma bandeira alemã ela certamente não teria me agradado. Por acaso uma bandeira brasileira não é exatamente tão ridícula quanto uma alemã? Uma vez que não houve mais nenhum gol até o intervalo, tive tempo de refletir a esse respeito. A respeito da minha relação fraturada com tudo aquilo que tinha a ver com aspectos nacionais, e que acaba caiando e disfarçando as relações verdadeiras entre amigos e inimigos --pelo menos cem anos após o começo da Primeira Guerra Mundial.

E também pensei que ninguém usa a seleção alemã em seu próprio proveito com tanta habilidade quanto Angela Merkel. Mas nem de longe só Angela Merkel!

No começo da Copa do Mundo eu me senti como há alguns anos com o Tour de France. Eu gostava de ver a competição dos ciclistas na televisão. Mas agora, depois de todos esses escândalos de doping, eu só conseguia achar a corrida ridícula. A Fifa, os protestos no Brasil, os escândalos de apostas pareciam alcançar o mesmo efeito. E mesmo assim minha mão se cerrava num punho? Por quê?

No intervalo, as pessoas saíram do bar aos borbotões para fumar ou apenas para se mexer. Clara, com sua bandeira em torno dos ombros, não parava de responder a perguntas, era consolada, apontavam para ela mostrando compadecimento. Os garçons, disputados por todos, chegavam até a nossa mesa sem que os chamássemos. E logo recebíamos mais um refrigerante, mais uma cerveja. Os outros acabaram por se curvar às circunstâncias.

Na televisão, o noticiário. Ataques a Gaza, guerra. As conversas sobre futebol eram altas demais para que se pudesse entender alguma coisa; por outro lado, ninguém estava interessado naquilo.

Uma mulher chegou e perguntou se podia se sentar à nossa mesa. Ela estava vendo o jogo sozinha em casa e em dado momento não aguentou mais: "De repente senti medo de que aquilo estivesse passando só na minha televisão!"

No começo do segundo tempo, passava um pouco das 23h, Clara ficou cansada. Será que ela se incomodava com o fato de o pai e os outros a tratarem como uma doente, ou como alguém ferido depois de um acidente de carro, ou será que ela percebia aos poucos que era a estrela secreta do bar?

E então veio o gol do Brasil, e o incômodo de Neuer e companhia com o gol, o gol de honra: que vergonha! Clara e eu debochamos dele --esse CDF tão talentoso! "Quando finalmente vamos ao Brasil?", perguntou Clara. Tentei pagar a conta. O garçom fez um gesto, mostrando que eu deixasse pra lá. Nem mesmo a cerveja? "Tudo certo!", exclamou o garçom.

Quando a mulher ao nosso lado ficou sabendo que o aniversário de Clara ainda poderia ser comemorado por alguns minutos, exclamou: "Você jamais vai esquecer esse seu aniversário brasileiro!". E é bem provável que ela tenha razão!

sobre o texto

Um dos principais escritores contemporâneos de língua alemã, Ingo Schulze escreveu esta crônica especialmente para a "Ilustríssima".


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