Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

Ilustrissima

  • Tamanho da Letra  
  • Comunicar Erros  
  • Imprimir  

Arquivo Aberto

MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Jardim das delícias

Londres, 1986

Nicolau Sevcenko

Olho pela janela do alto do prédio da Biblioteca Central da Universidade de Londres e vejo uma cena fantástica. Por todo o jardim externo até a esquina, onde fica o Diretório Central dos Estudantes, a ULU (University of London Union), havia se espalhado uma massa extravagante de formas, cores, materiais e um mundo de gente trabalhando em agitação festiva, sob o sol do verão.

Vista do alto daquele depósito cinzento de livros empoeirados, era a visão do "jardim das delícias". Larguei tudo e corri para lá.

Eu sabia o que era. Desde o final do semestre letivo, não se falava de outra coisa que a organização de um megaevento para denunciar o regime do apartheid na África do Sul, exigindo a imediata libertação de Nelson Mandela. Não tinha apenas a ver com um país em particular, uma injustiça atroz e um regime especialmente repugnante. Àquela altura o caso assumia uma proporção simbólica em escala mundial, já nos estertores da Guerra Fria, com o governo sul-africano municiando grupos de extrema direita e encarnando o arqui-inimigo do mundo pós-colonial e das comunidades discriminadas, oprimidas e espoliadas por toda parte.

Claro, no Reino Unido, isso se referia não apenas aos imigrantes, mas a toda a vasta população que assistia aflita ao desmonte do sistema público de bem-estar social por Margaret Thatcher, anunciando os ares de ganância, intolerância e insensibilidade da nova ordem mundial.

Isso tinha tudo a ver com os jovens e estudantes. Desde o início do seu governo, em 79, Maggie havia cortado as verbas para a educação em 10%, taxa aumentada a cada ano. Era o que os conservadores chamavam de "a política da mudança" (the Switch).

A ideia era cortar as verbas para cursos de artes, humanidades e ciências sociais, as bases da educação liberal iluminista da Grã-Bretanha, repassando recursos, em termos restritos, para as áreas de ciências, tecnologia, engenharia e medicina. De passagem, as universidades eram instadas a buscar verbas junto a empresas privadas e os alunos, com bolsas cortadas e altas mensalidades, levados a assumir empréstimos para pagar pelos cursos. Em paralelo, verbas públicas foram canalizadas para conglomerados corporativos de ensino superior técnico e profissional. Conhecemos.

As universidades, portanto, como o restante da sociedade, estavam em franca ebulição. A química que catalisou essa turbulência, naquele verão de 86, foi gerada pela frente ampla de resistência chamada de Cunha Vermelha (Red Wedge). Criada por músicos como Billy Bragg, Paul Weller e Jimmy Somerville, ela reunia toda uma gama de ativistas independentes ligados ao mundo das artes e da cultura. Jimmy era habituê do bar que frequentávamos em Notting Hill Gate, ambiente radicalizado, com gentes de todas as tribos independentes, Redskins Rebels, Club Sandino, Lynx, Earth First, Primitive Urban, Mutoid Waste, o lote.

Como a ULU tinha um bar e um espaço de shows que era o templo da música independente, o público era praticamente o mesmo nos dois espaços.

Quando me juntei à turba trabalhando nos jardins da ULU, era evidente o papel decisivo assumido pelo pessoal das escolas de arte. Desde o pós-guerra o foco nevrálgico da sociedade britânica passou a ser as práticas criativas: música, artes gráficas e visuais, design, moda de rua, performance, teatro experimental, crítica cultural. Era essa galinha dos ovos de ouro que a nova ordem estava matando e os independentes queriam manter viva.

No dia seguinte marchamos pelo centro da cidade em direção ao concerto Artistas Contra o Apartheid, em Clapham Commons, no sul. Éramos cerca de 300 mil pessoas. Ninguém imaginou aquilo possível. Era teatro de rua: máscaras, fantasias, bonecos, música e dança. Consolidou-se ali um modelo de protesto como celebração da arte coletiva, do prazer da comunhão social, que se desdobraria nos motins da Poll Tax e depois, pelo mundo, com as manifestações antiglobalização e o agito Occupy. Esse êxtase do reencontro do calor social, só a violência sufocaria.


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página