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Imaginação

PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

Três contos

DALTON TREVISAN

Noite

Friorento, o sol se recolhe sobre os últimos telhados. O vento balouça de leve a samambaia na varanda. A casa toda em sossego. No quintal o cãozinho late aos pardais que se aninham entre as folhas.

A magnólia pende a cabeça com sono. Já não bole a cortina.

No silêncio da penumbra se ouve cada vez mais alto o coração delator do tempo: um relógio.

Diante da janela o passarão da noite farfalha as asas. O galo não gala a galinha. Duros objetos perdem os contornos agressivos. Há paz na cidade.

Em pé no balcão os operários bebem cálice de pinga. As caixeiras deixam as lojas com a bolsinha na mão. Eis a noite que se esgueira em surdina no fundo dos quintais.

As mulheres são mais queridas a essa hora. O rosto iluminado pelo farol dos carros é promessa de delícias.

Os bondes sacolejam nos trilhos, em cada janela um rosto diferente. O mundo não é uma festa de prodígios: gnomos, baleias voadoras, unicórnios, basiliscos de fogo?

Escancaram as sete portas da noite. O ar povoado de sombras. Não mais o dia dos pequenos ódios nos olhos, das injúrias furiosas pelas costas. Os carros já não devoram ciclistas.

Enxugando os dedos no avental, as mães chamam os filhos que brincam na rua.

Se aquietam as vozes. Os pardais não pipiam nas árvores. Nem late o cãozinho.

A pomba da noite é mansa. Arrulha o amor na sopa quente sobre a mesa.

Encontro

Mata‑sete de estradas, andarilho por aí, um capim doce na boca. Aos berros, chutando pedras. Descanso à sombra das árvores (mordido pelas formigas) e cuspo três vezes nos marcos do caminho. Cruzo de tardinha a ponte sobre o pequeno rio. Chorões nas margens, os guris pescam e fumam, de papo pro ar.

Avanço na rua de eucaliptos e, à sombra, mesas com manchas de vinho nas toalhas brancas. Uma casa antiga de pedras; no campo, homens em linha ceifam o trigo com suas longas foices.

Bato palmas, uma velha põe a cabeça na janela. Digo que venho de longe, do outro lado do oceano. Tenho sede, minhas botas de sete‑léguas por um copo d'água.

Com um sorriso, ela me convida a sentar. Em vez de água, traz um jarro de fresco vinho tinto. Vaidosa, um xale de renda sobre a cabeleira branca. Enquanto bebo, deliciado, me conta da próxima colheita, que se anuncia próspera. E não sei o que sobre a torre do relógio na praça da igreja.

Esbaforidas chegam duas meninas gêmeas, as netas da velha e qual é uma? qual é outra? Agora já sei: uma, Bianca e a outra, Bruna.

Em surdina surge da cozinha uma garota de vestidinho branco (é sua filha mais nova, diz a velha, quando ela foi buscar mais néctar), esbelta e pálida, grandes olhos claros.

Bebo aos poucos o generoso vinho e, enquanto as sombras se insinuam nos cantos, mais brilham os olhos da moça quieta na porta, o pé esquerdo fora do chinelo. Ergo o meu copo e saúdo, ó fruteira de pêssego e romã no fino cristal de Murano!

Ela acena de leve a cabeça. Nem uma só palavra - e tudo foi dito. Entendi que viera de tão longe só para vê-la. E nunca mais esquecer.

O último gole, dobram os sinos no campanário sobre a estrada de sombra. Prometo voltar um dia para a festa da neve sobre o jardim de cerejeiras - e perna pra que te quero.

Na curva do rio olho para trás. A garota ainda na porta. Os olhos agora invisíveis, que adivinho quentes, como a estrada por onde marcho de coração alegre.

Benedito

Benedito arrasta os pés de tanto correr estrada e pular arame farpado. Dá boa‑noite à mulher, com a panela no fogo. Entre gemidos, senta diante da gamela para lavar os pés.

Esfrega nos dedos as manchas secas de sangue e enxuga num trapo qualquer. Sempre ao alcance da mão a gasta mochila preta com seu tesouro (bolacha de mel, punhalzinho, boneca de pano, pedaço de corda, pião, santinho colorido, o que mais?).

No fogo espirram fagulhas e abrasam o carão da bruxa que revolve na panela fervente a longa colher de pau. Benedito ajeita o cabelo grisalho, cada dia mais ralo. Bate o pó no macacão sujo. Os braços arranhados pelas pequeninas unhas ferozes. Dos espinhos no mato, diz ele.

A mulher resmunga, ele coça no toco de mindinho o bigode. Quer saber dos netos. Ri, contente.

Conta que buscou debalde no campo a erva da benzedeira. Errando pela estrada, bebeu água num córrego, andou com duas crianças no caminho da escola.

A voz baixa e mansa, espiando o clarão vermelho nas rugas da velha, que prova o caldo na colher. Sente‑se o avô de todas as meninas, também ele brinca de roda‑cutia. Elas com um laço da corda no pescocinho magro, cada vez mais apertado...

Acomoda‑se em silêncio no banquinho. A mulher enche o prato de sopa, Benedito chupa com ruído a colher, de tanto gozo o caldo de feijão escorre pelo queixo. Pronto a velha estende a mão briguenta: quer dinheiro.

Benedito baixa os olhos. Gastou com a bala de hortelã pra uma negrinha. A megera se ergue, braço trêmulo, praguejante:

- Seu cachorro, traste duma figa, vagabundo da peste!

Ela se abanca e, a uma chispa do fogo, vê que Benedito chora, a colher de sopa esfriando no ar.


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