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Inédito

A noite da arma

David Carr conta seu percurso do crack ao 'NYT'

DAVID CARR

RESUMO A série de trechos de livros que a "Ilustríssima" adianta em primeira mão traz a autobiografia do repórter de mídia do jornal "The New York Times". Dependente de cocaína e crack nos anos 80 e 90, ao se reabilitar David Carr se transformou num dos principais repórteres dos EUA. A editora Record lança o livro em dezembro.

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EIS O QUE MEREÇO: Hepatite C, uma pena a ser cumprida em prisão federal, HIV, um frio banco de parque, uma morte prematura e vazia.

EIS O QUE TENHO: Uma bela casa, um bom emprego, três filhas lindas.

Eis o que lembro sobre como "aquele cara" se transformou "nesse cara": Não muito. Viciados não costumam colocar coisas em caixas; eles usam as caixas em suas cabeças, de modo que tudo à sua volta -o céu, o futuro, a casa rua abaixo- está perdido para eles. [...]

NO MEU 21º ANIVERSÁRIO, saí com Kim, que trabalhava no restaurante Little Prince e que haveria de se tornar minha mulher. Também cheirei pó pela primeira vez naquele dia. O relacionamento com a cocaína revelou-se muito mais duradouro que o casamento e definiria a década seguinte da minha vida.

Um traficante que gastava seu dinheiro com Don Pérignon no restaurante me deu uma lata de cigarros Balkan Sobranie quando descobriu que era meu aniversário. E me disse para abrir a lata no banheiro. Vi o pó e soube o que fazer.

Foi um momento mágico; de súbito, eu havia feito a descoberta mais importante da minha vida. Meu Deus, finalmente posso ver! Fusão a frio, bem no reservado do banheiro; foi a melhor coisa de todos os tempos. Minhas endorfinas pularam com aquela nova oportunidade, abraçando-a e sentindo todos os seus esplêndidos recantos.

Caramba, isso é o que há de melhor. Você pode rir o quanto quiser, mas [o escritor francês Marcel] Proust teve uma epifania similar comendo uma "madeleine": "Um tremor me percorreu, e parei, absorvido pela coisa extraordinária que acontecera comigo. Um prazer delicioso invadiu meus sentidos, algo isolado, distinto, sem nenhuma sugestão sobre sua origem".

Cada viciado é moldado no cadinho da memória desse primeiro barato. Mesmo que as endorfinas disponíveis se atenuem, a memória está bem ali. A caça começou. Às vezes durava horas, às vezes dias -no meu caso, durou anos sem fim. Eu já ficava muito louco só pelo fato de ter cocaína no bolso, sabendo que eu contava com uma pequena vantagem com que poucos outros podiam contar.

Havia passado a minha vida aterrorizado, pensando que deixaria escapar alguma coisa, e agora não precisava mais ficar assim. Se eu tivesse investigado mais profundamente, também poderia ter visto que a cocaína alimentava algo em mim que era rebelde e ingovernável; mas haveria tempo para investigar aquilo mais tarde.

Na escola e fora dela -eu assistia às aulas quando podia, enquanto trabalhava no Little Prince-, eu dizia às pessoas que era jornalista, tendo como evidência apenas a palavra sussurrada. Depois, peguei uma história real para o Twin Cities Reader, um semanário alternativo local, e a febre de continuar com isso. Desenvolvi imediatamente um intenso interesse por essa atividade.

Mas nunca era suficiente trabalhar com as histórias e a atenção que vinha com elas. Escondidos em redutos suburbanos seguros, garotos que tinham vida fácil, como eu, manufaturavam o perigo. Quando não há espaço, fazemos o nosso, tentamos alcançar alguma coisa que se aproxime do clichê de estarmos completamente vivos, porque poderíamos morrer a qualquer momento.

Aquela busca por sensações levava ao divórcio entre o ser e o corpo, à maneira de Descartes, e a uma vida de falso perigo. Tudo que me trazia alegria envolvia risco. Sim, usemos mescalina e, é claro, vamos passear naquela ponte a muitos metros de altura sobre o rio St. Croix. Estou certo de que vamos ouvir o trem se ele vier, não é? Meus amigos usavam LSD e se maravilhavam ao contemplar suas próprias mãos. Eu pingava o ácido e organizava viagens.

NO COMEÇO DE 1986, experimentei aquela coisa então ultramoderna chamada de "freebase" e, depois, o crack. Outro momento heureca -isto é o que há de melhor. Só que ainda melhor e mais rápido. A fumaça tornou-se um foguete farmacológico em aproximadamente quatro segundos e meio. Logo me transformei em um autodidata, aprendendo a fazer crack. Um pouco de cocaína e bicarbonato de sódio em uma colher sobre o fogo e voilà, estávamos viajando.

Durante o dia, eu fazia matérias jornalísticas para o Twin Cities Reader. Eu levava para o lado pessoal funcionários públicos recalcitrantes e escorregadios -meu calabouço moral na época está, em retrospectiva, carregado de ironia- e me alinhava com fontes que eu pensava estarem fazendo o trabalho em favor do povo.

Os romances policiais me atraíram desde cedo -de hábito é pequena a distância entre a polícia e os criminosos. Mas quando eu me metia em uma confusão própria, nunca recorria aos meus contatos no departamento de polícia; sempre tentava ficar em silêncio e de cabeça baixa, e me escondia dos policiais que conhecia ao ser fichado. Alguns dos truques dos mafiosos que eu aprendia de noite me ajudavam em meu trabalho durante o dia, mas progredi principalmente apesar do meu vício.

No outono de 1983, fiz uma matéria sobre um banco de alimentos que desviava fundos. Mais tarde naquele ano, uma matéria sobre o esforço de uma comunidade de um bairro para fechar um enorme projeto de alimentação para os sem-teto.

Em 1984, fiz um artigo sobre uma ação coletiva civil na Justiça federal que sugeria que os fabricantes do dispositivo intrauterino contraceptivo Dalkon Shield tinham distribuído o produto sabendo que sua própria pesquisa havia mostrado que era perigoso. [...].

MEUS MUNDOS começaram a colidir um pouco em 1985 e 1986, quando fiz uma reportagem muito detalhada em um grande centro de desintoxicação -mais tarde eu voltaria para lá como paciente- e, junto com outro repórter, publiquei um retrato generoso e empenhado do Bloco E, um quarteirão do centro da cidade, em que consegui criar um nexo entre erudição e patologia urbana.

Fiz investigações sobre o importante papel da firma de supercomputadores Control Data Corporation, que fornecia infraestrutura para o governo da África do Sul, e noticiei a ascensão de gangues de rua das grandes cidades no que fora um distrito bastante tranquilo de Midwestern.

Já então havia sinais que indicavam que, sem um centro, as coisas desmoronariam. Nessa época, eu estava trabalhando em uma matéria sobre um tira durão que dirigia a unidade de operações sigilosas da polícia de Minneapolis. Um suspeito tinha sido morto a tiros acidentalmente quando estava sendo preso. Outro repórter e eu investigamos e descobrimos que o tal tira que dirigia a unidade havia iniciado, mas não havia terminado, um tratamento de dependência química.

As leis do Estado de Minnesota exigiam que ele entregasse sua arma por um dado período de tempo. Quando o entrevistei, ele se mostrou educado e sério. Mas alguns dias depois, meu telefone tocou e ouvi a voz dele dizendo -lembro-me disso décadas depois: "Quer saber de uma coisa? Andei perguntando por aí, e a sua vida não é tão limpa assim... É melhor você olhar por onde anda".

Semanas depois, quando eu dirigia, pude ver no retrovisor o furgão que a unidade de operações sigilosas usava. Aquilo me assustou e pôs limites ao meu estilo. Mais tarde, tive uma conversa constrangedora com o chefe de polícia, queixando-me de que alguns de seus agentes estavam me seguindo. Ele os fez parar.

Mas, na maior parte dos anos 80, controlei bem os meus negócios, todos eles simultaneamente. Em meu pequeno mundo provinciano de Minneapolis, eu me sentia como um rei. Tinha um emprego, cocaína e muitos amigos.

No meu 30º aniversário, no dia 8 de setembro de 1986, um amigo me deu uns cogumelos e me levou até o salão dos fundos do McCready's para uma rápida cheirada. A porta se abriu, e eu vi uma banda, serpentinas e mais de cem pessoas -roqueiros, atores, traficantes de drogas, advogados, jornalistas e integrantes da máfia- todos usando camisetas em que se lia "Sou amigo íntimo de David Carr".

Não diga!

NAQUELA ÉPOCA, muitos de meus amigos foram parar na prisão. Mas eu era apenas um cara com mau comportamento, que passava horas -e, de quando em quando, dias- nas diversas cadeias de condado. Quando as coisas ficavam pretas, minha família -quase sempre meu pai- intervinha.

Depois de longas e torturantes discussões familiares sobre todas as oportunidades que eu estava desperdiçando e toda a miséria que eu estava espalhando por aí, me mandavam fazer um tratamento (quatro vezes, no total), e eu prometia mudar de atitude. Mas com ou sem tratamento, continuei a viver pelo credo de [Ralph Waldo] Emerson: moderação em todas as coisas, especialmente na moderação.

Com o passar do tempo, porém, combinei uma vida promissora como escritor com noites sombrias povoadas de gângsteres inexperientes e vícios maduros. Tornei-me um fornecedor estável da comunidade criativa de Minneapolis, vendendo cocaína para músicos, atores e garotos da night.

Eu traficava gramas, quantidades pequenas -ninguém me confiava um quilo por mais de poucos minutos. Eu não namorava mulheres, fazia reféns. Casei com Kim por todas as razões equivocadas e rapinei nossa conta bancária com um cartão de débito eletrônico. (Eu meio que acreditava, naquela época, que os caixas eletrônicos tinham sido inventados por um cartel de drogas para manter o dinheiro vivo circulando de noite.)

Havia noites em que eu chegava e ia para a cama ao lado dela como uma pessoa normal e, quando ela adormecia, eu escapulia da cama e ia para um beco do outro lado da rua encontrar uma mulher que conhecia. Depois que eu e Kim nos divorciamos, entrei em um relacionamento com uma mulher chamada Doolie e lentamente a levei à loucura. Ela era estonteante, graciosa como o inferno e atraía olhares no bar, o que levava a muitos tapas subsequentes. Minha duplicidade em relação às mulheres era altaneira e crônica.

Eu trapaceava e manipulava meu caminho até a cama delas e depois as tratava como joias humanas, algo a ser usado por conta da aparência. Certamente aquilo nada tinha a ver com a minha pinta. Longe de ser bonito, tenho um rosto que parece esculpido em purê de batata, e minha ideia de exercício era correr dois metros.

Uma noite, em 1986, eu fui a uma festa em benefício do Phil, uma antiga conexão de cocaína que estava prestes a ir para uma prisão federal. Lá conheci Anna, que tinha cocaína melhor que a de Phil e que logo desenvolveu uma predileção por mim. Éramos uma mistura impressionante, metastaseada pelo ilimitado suprimento de cocaína dela. Eu ensinei a Anna como fumá-la. Mais tarde, em 1987, um dia ela voltou para casa com uma agulha no bolso, e entrei no barato dela.

Perdi meu emprego, ela perdeu seu negócio. Era para tudo ter terminado ali, mas, no dia 15 de abril de 1988, Anna deu à luz gêmeas. Minhas filhas. Nossos amigos remanescentes nos tinham rogado, bastante razoavelmente, para que abortássemos. Estávamos fumando crack no dia em que rompeu a bolsa d'água de Anna, e as meninas nasceram prematuras em dois meses e meio, com menos de um quilo e meio cada uma. Amigos começaram a boicotar nossa casa, porque ela tinha se tornado um cruel e quase científico quadro de progressão do vício.

Afinal, ambos terminamos em tratamento, e nossas filhas foram para lares provisórios. Eu voltei a ficar sóbrio, Anna não conseguiu e fiquei com as gêmeas, Erin e Meagan. Depois disso, vivi apagando incêndios a maior parte das duas últimas décadas, por conta das promessas que a reabilitação traz, com a sorte, a diligência e o destino guiando-me para uma vida além de todas as expectativas.


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