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Arquivo aberto

MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

O passado a quem pertence?

São Paulo, 2004

RUBENS REWALD

UM PRIMEIRO FILME de longa-metragem é um acontecimento aguardado por anos, décadas, um atestado de maioridade, de maturidade artística e de visibilidade para um profissional do cinema. No entanto, os custos milionários de um filme, a enorme concorrência nos editais públicos, tudo conspira para que o longa pareça algo distante e inacessível.

Mas eis que, em junho de 2004, já maduro, pós-Collor, pós-crise, iniciava a pré-produção de meu primeiro longa, "Corpo", concebido por Rossana Foglia e dirigido por nós dois. E um problema bem concreto nos desafiava: precisávamos de uma locação para o necrotério, cenário central do filme, espaço dramático do protagonista, o médico-legista Artur.

Estudamos diversas possibilidades, visitamos inúmeras locações, até que chegamos em uma que nos pareceu ideal: a Maternidade de São Paulo, fechada e falida, com suas amplas salas de cirurgia, longos corredores e silêncio garantido, tudo de que precisávamos.

Não deixava de ser irônico encenar um IML no lugar que já foi o grande berço de São Paulo. A imponente maternidade, na rua Frei Caneca, era a principal da cidade, com centenas de milhares de partos ocorridos por todo o século 20. Muita gente nasceu lá. Paulo Maluf. Ayrton Senna. Suzana Vieira. Eu.

Esse espaço, outrora agitado e ruidoso, preenchido por pais, parentes, médicos, enfermeiras, funcionários, bebês, fraldas e charutos, agora estava vazio, escuro, lúgubre, exalando decadência por todos os cantos. Mas uma trupe cinematográfica lá se instalou e logo começou a ocupar o espaço, percorrendo todo o prédio, escolhendo onde seria cada espaço dramático.

Nessa expedição pelo prédio abandonado, abrimos diversas salas e, numa delas, encontramos centenas de livros de arquivo espalhados pelo chão. O funcionário que nos acompanhava explicou que se tratava dos prontuários de cada bebê que lá nasceu. Todos olharam a bagunça documental, balançaram a cabeça e foram para uma outra sala, mas eu permaneci, fascinado com aquele arquivo morto de recém-nascidos.

Pesquisei melhor e vi que, apesar de espalhados pelo chão, havia uma ordem cronológica naqueles pesados livros azuis e então comecei a buscar freneticamente por algo, até que afinal achei: a minha própria ficha de nascimento.

Vi o nome de minha mãe, Bertha Bety Rewald, idade 32, cor branca, profissão do marido téc. hidráulica (o nome do pai não importava, só a profissão). Vi também que, no diagnóstico da paciente constava em letras garrafais: pré-diabete, hipertireoidismo, toxemia. Um quadro complicado. Sempre soube do parto difícil que foi o meu, uma cesariana cheia de riscos, devido às complicações de tiroide de minha mãe. Nessa ficha, vi a confirmação médica dessa história, com todos os procedimentos utilizados até o meu nascimento, ocorrido ao meio-dia de 12 de abril de 1965.

Examinei emocionado o papel amarelado, como se ele contivesse uma verdade necessária para eu compreender o que fazia ali, uma marca fundamental de minha existência, tão importante quanto a certidão de nascimento ou uma foto de um bebê ao lado dos seus pais.

Vi todos aqueles livros no chão e não tive dúvidas de que aquele papel deveria me pertencer. Olhei para os lados, ciente do crime que iria cometer, e arranquei a ficha do arquivo. Guardei-a numa pasta e saí de lá, rápido e gatuno.

No dia seguinte, o funcionário, que sabia que eu tinha nascido lá, se dispôs a procurar o meu prontuário de nascimento e me mostrar. Em pânico de que descobrissem meu pequeno delito, dissuadi-o da ideia: "Esquece, amigo, deixa o passado para lá, o que importa é que estou aqui, vivo".

Por fim, a velha maternidade falida virava o intenso set de filmagem de "Corpo". Eu olhava aqueles corredores vazios e depressivos, via os fantasmas o percorrerem, ouvia os choros distantes dos bebês e encenava a morte e a decadência.


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