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Crítica

Morte sem drama

Em "O Som ao Redor", todos temem a própria sombra

LÚCIA NAGIB

RESUMO

Para crítica Lúcia Nagib, longa-metragem de Kleber Mendonça Filho dialoga com cinema brasileiro por meio da subversão de símbolos e de recursos narrativos consagrados por autores como Glauber Rocha. Já Mauricio Puls vê no filme a dissolução do Brasil coronelista numa era de profunda transformação social.

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O segredo de "O Som ao Redor" está numa fórmula simples, mas de difícil execução: a perfeita integração de forma e conteúdo.

O próprio limite do quadro fílmico é suficiente para universalizar a prisão da classe média -de Recife, do Brasil, do mundo. Basta replicar esse quadro numa multiplicidade de blocos de apartamentos, de janelas e grades sobrepostas, de azulejos e ladrilhos quadriculados recobrindo interiores, de telas digitais que decrescem do televisor de 40 polegadas à câmera de vigilância, ao laptop e ao telefone celular.

O universalismo do filme é uma mera questão de quadro, escala e proporção, propriedades que o cinema manipula melhor que qualquer outro meio. Assim como o cineasta japonês Yasujiro Ozu (1903-63) universaliza o drama familiar ao comparar garrafas de saquê ao pilar de um templo ("Era Uma Vez em Tóquio", 1953), em "O Som ao Redor" o plano de uma massa de arranha-céus se conecta a um conjunto de garrafas vazias na sala de estar em que um casal dorme depois da festa e do amor, miniatura exemplar do que ocorre nas centenas de apartamentos ao redor.

Assim, embora limitado a uma rua de Recife, "O Som ao Redor" produz identidade regional e nacional. Mas, para isso, usa o reverso do paisagismo grandioso que caracterizou o Brasil no cinema novo e depois no cinema da retomada, o sertão imenso e as imagens de mar prometendo, e continuamente frustrando, a realização utópica do paraíso sonhado pelos colonizador europeu.

O "travelling" que acompanha a corrida de Manoel em direção ao mar nunca visto, em "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (Glauber Rocha, 1964), no qual o crítico Ismail Xavier identificou a teleologia da história, é aqui substituído pela câmera que persegue uma menina de patins na garagem de um prédio, ziguezagueando entre os carros e afinal chegando a um pátio murado repleto de babás e crianças encalacradas. Não há saída nem finalidade para o movimento reto, que se interrompe na imagem, tomada através da cerca, de um serralheiro instalando outra grade no vizinho.

Mesmo a bola que um guri insiste em chutar para além dos muros tem seu percurso cortado pela roda de um carro que a esmaga. O mar, ali na esquina, tornou-se invisível, escondido atrás dos arranha-céus em que se enclausuram os membros do clã de Francisco, dono da maioria dos imóveis no local. Antigo senhor de engenho, autêntico e repugnante homem cordial de que nos fala Buarque de Holanda, Francisco é o único que se arrisca a um banho noturno no mar infestado de tubarões.

Que o assunto é o país fica claro já nas imagens de abertura, uma série de fotos de arquivo de trabalhadores da zona canavieira, que o espectador descobre ao longo do filme constituírem os predecessores dos personagens vivos atuais, o "punctum" barthesiano que, como uma flecha da história, vem ferir os agentes do presente. Barthes fala do "retorno do morto" na fotografia, e Freud do "retorno do reprimido", ativo tanto no inconsciente individual quanto na esfera social.

Em "O Som ao Redor", o retorno do passado submerso se dá na forma de personagens cotidianos dotados de um duplo fantasmagórico. É o menino negro, seminu, clone do "menino-aranha" real, que escala árvores e muros e povoa os pesadelos da menina abastada, reclusa em seu quarto. E são os guardas-noturnos que se infiltram nos edifícios cercados e monitorados que se revelam os filhos vingativos de um agricultor assassinado pelos capangas de Francisco. Já havíamos encontrado esse personagem mefistofélico que, vindo das baixas esferas, penetra a festa dos ricos corruptos em "O Invasor" (Beto Brant, 2002), e o desastre não foi menor.

Mas não há drama nenhum, e muito menos nostalgia, nessa história que necessariamente termina em morte. A propalada superficialidade dos atores vai além da má atuação recomendada por Brecht para que o intérprete se distancie do personagem que representa. Aqui, os atores comungam da superficialidade dos seus personagens. Forma e conteúdo se unem outra vez, e desta vez para mostrar que o "status quo", se não é exatamente bom, também não é necessariamente ruim.

Parece-me auspicioso que a dona de casa Bia, esquecida na cama pelo marido que ronca e atormentada pelo uivo do cachorro do vizinho, arranje alternativas de satisfação sensual e sexual, ainda que seja com o fetiche da mercadoria que Marx condenava. Como o esperto prisioneiro comum que faz chegar a sua cela as drogas, os celulares e as armas de que necessita, Bia compra maconha do entregador de água e a fuma soprando a fumaça na mangueira de um aspirador de pó apoiado na janela.

Ainda mais inventiva, ela se masturba aproveitando-se da trepidação da máquina de lavar roupas. Nisto o filme se compara à sexualidade mirabolante de outra obra-prima pernambucana, "Amarelo Manga" (Cláudio Assis, 2003).

Sexo é também um invasor em "O Som ao Redor". Está no axé, tocado a todo volume pelo vendedor ambulante de CD, que canta "pega na banana" para a vizinhança inteira ouvir; no desenho animado assistido pela netinha da empregada doméstica, mostrando Iansã em lúbrico frenesi; no elevador em que o casal João e Sofia se agarra e que o zelador contempla em sua guarita pelo circuito de televisão.

Os sons e as imagens do mundo lá fora que se filtram e se infiltram, para deleite onanístico de personagens enclausurados conferem um sopro de vida ao universo árido e feio dos blocos de apartamentos. Aliás, os filhos pré-adolescentes de Bia, sofisticados nerds que aprendem chinês e discutem economia, parecem conhecer e aceitar as idiossincrasias da mãe; a cena em que Bia, deitada de bruços no sofá, se deixa massagear pelos filhos nos pés e nas costas é de dar inveja a muitas mães.

FANTASMAGORIA

Equivalentes às janelas, frestas e telas por onde penetram os laivos do mundo exterior, quartos, corredores e elevadores são caixas acústicas de um universo interior que se extravasa. Michel Chion chamou de "acousmêtre" o som cinematográfico sem fonte identificável na imagem que, por isso, tem poder de onisciência e onipresença. A fantasmagórica mistura de sons que acompanha muitas das imagens -rumor de vozes, máquinas, ondas, pássaros- sem motivação na diegese parece ao mesmo tempo rodear e derivar dos personagens.

Mais uma vez, é a forma cinematográfica fazendo história, como na cena em que João e Sofia visitam Francisco no engenho. Uma sesta na rede dá o tom semionírico a uma fascinante descida ao hades profundo do Brasil. As portas dos quartos da casa-grande vazia e abandonada são uma a uma abertas pelo casal, que ouve os passos do avô no andar de cima como os de uma alma penada. O périplo se estende ao vilarejo local, culminando num cinema em ruínas em que ainda se ouve a trilha sonora de um filme com gritos de mulher.

Fantasia a um só tempo trágica e paródica, o fim do cinema aqui anunciado, em sintonia com o restante do filme, é inteiramente despido de páthos. Sua função é confirmar o império da contenção, dos gadgets e da miniatura que, queira-se ou não, é a realidade atual.

O guarda-noturno Clodoaldo afirma que sua arma é o celular. Alter-ego do cineasta, ele assiste e manipula, com sangue-frio, na minúscula tela do aparelho, o assassinato de um de seus pares num bairro de Recife, captado por uma câmera de segurança. A primeira imagem que temos de Clodoaldo é no monitor da câmera de segurança de Anco, tio de João e o único a ainda residir numa casa em meio às torres ao redor. Voyeur de voyeurs, vítima que logo irá assassinar, pressente-se que, no final, Clodoaldo terminará assim, como mera imagem captada pela câmera de segurança ao morrer.

"O Som ao Redor" é a irresistível somatória dessas réplicas. Com sua multiplicidade de telas e lentes, é uma alucinante "mise-en-abîme" em que todo mundo se parece e teme a própria sombra. É registro documental do que foi, testemunho do que é, pressentimento preocupante, mas necessário, do que virá.


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