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Literatura

Do Prata à Guanabara

Arlt e a arte de andar pelas ruas do Rio

SYLVIA COLOMBO

RESUMO

Conhecido pelos romances de vanguarda e por seus textos sobre as ruas da Buenos Aires moderna, autor argentino tem crônicas escritas no Rio de 1930 reunidas em livro. Fino observador dos tipos populares e da nova paisagem urbana, Arlt se deixa seduzir pela capital brasileira, não sem manifestar críticas.

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"Assim acontece ao leitor passar pela rua e ver coisas como essas: um menino lavando os pés em um dormitório. Uma senhora penteando-se frente a um espelho. Um negro descascando batatas. Um cego repassando um rosário em uma cadeira de palhinha. Um padre velho meditando em uma rede, deixando de lado seu breviário. Duas moças descosendo um vestido. Um homem com pouca roupa."

Quem descreve essas cenas de um Rio de Janeiro caseiro, quente e popular na alvorada dos anos 1930 é um observador atento dos tipos urbanos, um filho de imigrantes europeus de passagem pelo Brasil que se tornaria um dos autores mais importantes da Argentina no século 20.

Então com 30 anos, Roberto Godofredo Christophersen Arlt (1900-1942) já se destacava como escritor e jornalista em sua Buenos Aires natal. Escrevia crônicas para o jornal portenho "El Mundo" e havia lançado um dos dois romances que lhe dariam projeção internacional, "Os Sete Loucos" (1929) -o outro seria "Os Lança-Chamas", de 1931.

O trecho acima é parte de uma das 39 crônicas escritas por Roberto Arlt no Brasil. Os textos foram publicados quase diariamente, entre os dias 2 de abril e 29 de maio, e permaneciam inéditos em livro. No segundo semestre deste ano, porém, as crônicas serão reunidas no volume intitulado "Águas-Fortes Cariocas", a sair pela coleção Otra Língua, da editora Rocco.

Organizada pelo escritor Joca Reiners Terron, a série tem como objetivo trazer títulos e autores de fora do cânone latino-americano. Na primeira leva, em maio, estarão o argentino César Aira, o uruguaio Mario Levrero e o salvadorenho Horacio Moya. As águas-fortes de Arlt -acrescidas do artigo "Com o Pé no Estribo", em que, em 8 de março de 1930, o escritor anuncia o início da viagem-, chegam às livrarias em setembro.

O organizador da edição e tradutor do volume é o diplomata Gustavo Pacheco. Responsável pelo setor cultural da embaixada brasileira em Buenos Aires, Pacheco descobriu os textos quase por acaso. Lendo uma biografia do autor, soube da existência das crônicas sobre o Rio. "Procurei alguma compilação que contivesse esses artigos e fiquei surpreso ao descobrir que eles nunca haviam sido publicados em livro. Resolvi, então, ir à hemeroteca da Biblioteca Nacional argentina e ver se eles dispunham dos originais. Encontrei uma coleção de 'El Mundo' em microfilme que continha todas as 'aguafuertes' escritas no Brasil.".

Arlt seguiria com suas viagens e publicaria outras "aguafuertes", galegas, asturianas, madrilenhas, uruguaias e as mais famosas, as portenhas. Todas, porém, já saíram em livro, salvo as brasileiras.

O escritor mantém, ao longo dos textos, uma recusa a conjecturar muito a respeito do que vê. Seu relato é o de quem observa, apenas. Ou, como escreveu a ensaísta argentina Beatriz Sarlo sobre as "Aguafuertes Porteñas", "produz seu personagem e sua perspectiva", "tornando-se, ele próprio, um 'flâneur' modelo".

Desde o primeiro texto, já anuncia: "Não levo guias nem mapas, apenas, como introdutor magnífico para o viver, dois ternos, um para tratar com pessoas decentes, outro esfarrapado e sujo, o melhor passaporte para poder me introduzir no mundo subterrâneo das cidades que têm bairros exóticos".

No Rio, Arlt teve um cotidiano mais ou menos fixo. Durante o dia, andava e recolhia impressões. Fazia ginástica na Associação Cristã de Moços e, à noite, ia religiosamente à Redação do diário "O Jornal", onde escrevia a crônica que enviava a Buenos Aires.

ENTUSIASMO

De início, o escritor revela grande entusiasmo por estar no Brasil. Descreve o Rio de forma elogiosa e exaltante. Em comparação com Buenos Aires, diz, as relações são mais informais, há mais igualdade entre homens e mulheres, mais belezas naturais, menos conflito e "grosseria", em suas palavras. Esta, afirma, seria um traço do portenho que "desnaturaliza muitas coisas belas, inclusive destruímos a feminilidade da mulher portenha".

Também se fascina com o português: "Há que se ouvir uma 'menina' conversando, é a coisa mais deliciosa que se pode imaginar". A todo momento, faz referências ao clima e à boa relação dos cariocas com os espaços abertos. "Quando o leitor sai de sua casa, está na rua, não é verdade? Bom, aqui, quando você sai à rua, está na sua casa."

São frequentes os comentários negativos com relação aos negros, que ele praticamente nunca tinha visto antes e a quem chama de "animaizinhos". Sente-se envergonhado por observá-los. "Parei junto aos negros e comecei a olhá-los. Olhava e não olhava. Estava perplexo e entusiasmado frente à riqueza de cores. Para descrever os negros é necessário frequentá-los; têm tantos matizes! Vão desde o carvão até o vermelho-escuro do ferro na bigorna."

Os críticos literários que estudam Arlt apontam que o fato de ser filho de imigrantes sempre o fez sentir-se um pária no universo das letras argentinas. Ao mesmo tempo, essa característica o identificou com os tipos populares e o fez repudiar a pose da intelectualidade. Até o fim de sua curta vida, Arlt se manteve alheio aos círculos intelectuais e fiel às suas origens de classe média baixa do bairro de Flores, habitado por famílias de trabalhadores e imigrantes.

Durante sua temporada no Brasil, um jornal local o descreveu como um escritor argentino interessado em conhecer "a pátria do venerado Castro Alves". Arlt se indigna, diz que não conhece Castro Alves e reafirma que não veria nenhum intelectual durante sua estada no Rio de Janeiro. "Eu, se fosse vê-los, teria que dizer que são uns gênios, e eles, por sua vez, dirão que tenho um talento brutal."

O repúdio à intelectualidade estava também relacionado à sua própria falta de vínculo com as instituições educacionais. Tendo abandonado a escola aos oito anos de idade, virou desde cedo um autodidata, leitor assíduo de teatro e literatura russa. Aos 16, deixou a casa dos pais; no mesmo ano, publicaria seu primeiro conto, "Jehovah". Foi mecânico e operário de fábrica até entrar no jornalismo, ofício com o qual pagava as despesas de sua vida dedicada à literatura.

No Rio, aos poucos, Arlt vai mudando de opinião com relação à cidade. Os textos elogiosos à arquitetura, aos costumes e à natureza vão dando lugar a uma crítica feroz ao provincianismo, à ignorância e até ao forte calor do Rio. Lembra que, na Argentina, os operários são mais instruídos, e os sindicatos têm bibliotecas, algo que no Brasil não acontece. "O trabalhador não lê, não se instrui, não faz nada para sair de sua paupérrima condição social."

Buenos Aires vai surgindo em cores mais positivas. Arlt evoca os cafés e o costume, que existe até hoje, de passar horas neles, lendo ou conversando, algo que no Brasil não acontecia. Pior: no Brasil, se uma pessoa ficasse muito tempo numa mesa, era expulsa. Arlt comenta também a imprensa. "Aqui, não há jornal com tiragem diária de 150 mil exemplares. Compare isso com a tiragem dos nossos rotativos e o leitor terá uma ideia de quanto se lê em Buenos Aires e quanto não se lê no Rio."

A comparação numérica segue e inclui editoras e teatros. No final, o resumo: "Somos os melhores".


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