Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria
14 anos de perdão
Em vez de exceção, renegociação de impostos vencidos vira regra no país, consequência do complexo sistema tributário e da necessidade de ampliar a arrecadação
Uma nova ampliação do Refis, programa do governo federal de renegociação de dívidas tributárias vencidas, anunciada nesta semana, mostra que parcelamento generoso de débitos e anistia de multas e juros virou a regra, e não exceção, no Brasil.
Dois fatores levaram o programa, criado em 2000 e reeditado várias vezes desde então, a se tornar quase contínuo, em vez de excepcional.
Do ponto de vista das finanças públicas, o perdão tributário é uma ferramenta de curto prazo para que o governo federal brasileiro consiga fechar as suas contas anuais.
É que os débitos abrangidos incluem, por exemplo, valores inscritos na dívida ativa da União --ou seja, que estão sob cobrança judicial, processo que pode se arrastar por muito anos.
Garantir o pagamento imediato, ainda que perdoando parte do débito e permitindo o pagamento em prestações suaves, é uma forma de abastecer logo os cofres públicos.
No ano passado, o Refis permitiu ao governo federal ampliar a arrecadação em R$ 21,8 bilhões. Grandes empresas, como a Vale e a CSN, aderiram.
O primeiro Refis, em 2000, tinha como justificativa ajudar as empresas, que teriam sido prejudicadas pela forte crise cambial de 1999.
Na época, foi muito criticado o fato de o programa não diferenciar inadimplentes (quem declarou seus débitos para a Receita ou para o INSS, mas não pagou) de sonegadores (quem tentou escondê-lo). Quem aderisse ficava anistiado do crime tributário.
As edições a seguir--2003, 2006 e o Refis da Crise, de 2009, reaberto seguidamente para novas adesões (agora, bancos, seguradoras e multinacionais poderão parcelar dívidas vencidas até dezembro de 2013) --passaram a ser mais explícitas na justificativa: turbinar a arrecadação.
No caso atual, a meta é ajudar a cobrir o aporte de R$ 4 bilhões do Tesouro ao setor elétrico, que está em crise.
O problema é que a continuidade do programa, e a expectativa criada de que sempre haverá um novo Refis, cria aquilo que os economistas chamam de "risco moral".
Se as empresas passam a considerar que é vantajoso não pagar seus impostos e contar com renegociação adiante, a tendência é que, no médio prazo, a inadimplência dispare e a arrecadação diminua. Trata-se ainda de uma punição, não só moral mas também competitiva, a quem pagou os impostos devidos na data certa.
O REFIS É CONSEQUÊNCIA
Já da perspectiva do contribuinte, o Refis pode ser uma consequência de um sistema tributário maluco.
"Há que se questionar por que só no Brasil existe tamanha reiteração de um programa como esse", afirma o advogado e professor titular de direito tributário da USP (Universidade de São Paulo), Luís Eduardo Schoueri.
Ele aponta que, onde há um sistema tributário menos complexo, o contribuinte sabe bem quanto deve pagar de impostos.
"No Brasil, não há essa certeza, os entendimentos divergem, e o débito vai parar em instâncias administrativas ou judiciais. O nosso grau de contencioso não é comum. E nosso sistema é volátil, condutas consolidadas se tornam ilícitas de repente."
Só o governo federal, em débitos tributários, previdenciários e similares, tem hoje a receber cerca de R$ 1 trilhão, ou cerca de 25% do PIB.
"Com um valor tão alto, o Refis é inevitável. A economia quebra se todo o valor for exigido", diz Schoueri. Segundo ele, a "conciliação" com o governo é uma opção mesmo para quem tem a expectativa de vitória judicial.
"Já vi muitos casos em que o empresário é autuado, e os advogados acham que ele tem razão. Aí vem um Refis. Como ele não tem certeza sobre o desfecho, em nome da segurança, acaba aceitando, mesmo com uma ótima tese em mãos. No nosso escritório, há autuações de multinacionais que acabam, com as multas e juros, envolvendo valores tão altos que a matriz fica assustada, responde que isso a quebraria. O Refis vira uma tábua de salvação", diz.
REFIS NO MUNDO
Ele lembra que há outros países que já fizeram programas parecidos com o Refis, como a Itália, mas de maneira excepcional, em vez de rotineira. No Brasil, ao longo dos anos, a moda pegou e vários governos estaduais e municipais passaram a editar seus próprios Refis.
Ou seja: o próprio sistema tributário caótico, que conta com 80 tributos e cria 30 novas normas por dia, cria suas válvulas de escape, seja o Refis, para os grandes, ou o Simples, para as pequenas empresas.