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Crônica de um calote anunciado

Tentativa de acordo costurada na última hora por bancos argentinos para evitar 'default' naufraga no xadrez entre governo Cristina e setor privado

RAQUEL LANDIM ENVIADA ESPECIAL A BUENOS AIRES

Já era tarde da noite da quarta-feira (30) quando Jorge Brito, o poderoso dono do Banco Macro, ligou para outro banqueiro e decretou: "O acordo apodreceu". A conversa ocorreu no último dia do prazo para a Argentina evitar o calote de sua dívida, o segundo em 13 anos.

Brito se referia à tentativa dos bancos privados argentinos de comprar os títulos da dívida do país nas mãos do que o governo do país chama de "fundos abutres", por recolherem papéis que praticamente já não valem nada e pedir mais nos tribunais.

Ao se tornarem os novos credores, eles pediriam à Justiça americana mais prazo para negociar com o governo argentino, evitando o "default".

A Argentina está hoje na insólita situação de "calote técnico".

O juiz americano Thomas Griesa impediu o país de pagar uma parcela da dívida renegociada com a maioria dos credores após o calote de 2001 sem resolver a situação dos 8% que ficaram de fora.

Os "fundos abutres" não aceitaram conceder um desconto de 70% para renegociar e ganharam na Justiça o direito de receber o valor integral, US$ 1,3 bilhão.

O problema é que, até dezembro, os contratos impedem a Argentina de fazer para eles uma proposta melhor que a feita aos demais. Se seguisse adiante, teria que estender as novas condições a todos, o que significaria uma conta de US$ 120 bilhões.

As reservas internacionais do país não chegam a um quarto desse valor.

PRÉ-ACORDO

Segundo a Folha apurou, no fim da tarde de quarta, havia um pré-acordo selado entre os bancos argentinos e o fundo NML, do milionário americano Paul Singer.

As negociações foram difíceis. A princípio, os bancos ofereceram uma garantia para os fundos pedirem mais prazo ao juiz. Só que os argentinos queriam uma "trégua" até dezembro, enquanto os "abutres" insistiam que só podiam esperar até setembro.

Surgiu então a proposta de os bancos comprarem a dívida dos fundos por US$ 1,4 bilhão. O plano parecia perfeito: uma negociação entre atores privados, eximindo o governo de responsabilidade.

A notícia chegou aos banqueiros de Buenos Aires e aos sites dos jornais locais. Quando o ministro da Economia, Axel Kicillof, entrou sorrindo para a coletiva de imprensa no início da noite em Nova York, tudo parecia resolvido.

SUSTO

Mas Kicillof surpreendeu: defendeu que a Argentina não havia dado calote e disse que não pagaria aos fundos mais do que ofertara aos demais credores na renegociação em 2010.

Os banqueiros argentinos, que achavam que a questão era apenas a prorrogação do prazo, tomaram um susto.

Isso significava que o governo só estava disposto a pagar US$ 400 milhões, mesmo no futuro. Quem arcaria com US$ 1 bilhão de diferença em relação ao que eles pagariam aos "abutres"?

No dia seguinte, Sebastian Palla, o homem de confiança de Brito que liderava a equipe negociadora em Nova York, voltou para casa de mãos vazias.

O que teria acontecido?

Oficialmente, o governo diz desconhecer a iniciativa dos bancos. Muitos, porém, duvidam. "Essa situação poderia ter sido evitada, mas ocorreu por um cálculo político", diz o consultor Gabriel Rubinstein, que integrou a equipe do ex-ministro da Economia Roberto Lavagna.

SAN MARTÍN

A percepção de empresários, consultores e banqueiros ouvidos é que a presidente Cristina Kirchner "não tolerou que Brito saísse como salvador da pátria".

Em acalorado discurso no pátio da Casa Rosada no dia seguinte ao calote, Cristina disse que "alguns apareciam como generosos, mas, para ser San Martín, tem que ter coragem e honestidade de dizer as coisas como são".

Para os jornais locais, ela se referia a Brito, que, segundo a mandatária, estaria procurando ser comparado a José Francisco de San Martín, o militar que foi decisivo na Independência da Argentina.

Brito e os Kirchner já foram aliados, mas estão praticamente rompidos. O banqueiro, que também foi próximo do ex-presidente Carlos Menem, hoje apoia o deputado Sérgio Massa, que lidera as pesquisas para a eleição presidencial no ano que vem.

O desfecho desfavorável do acordo tampouco agradou a Juan Carlos Fábrega, presidente do Banco Central argentino, que teria costurado o acerto com os bancos.

Segundo banqueiros locais, ele teria pedido demissão, o que a assessoria do BC nega. Fábrega, respeitado no meio empresarial e financeiro, é desafeto de Kicillof, conhecido como acadêmico.

Kicillof teria convencido Cristina de que "o mundo não acabaria" --como ele disse no dia seguinte ao calote. Para o governo, o problema será breve, e o impacto, limitado.

O mercado deu um voto de confiança. Os fundos seguem comprando os papéis do país na expectativa de um acordo, desta vez liderado pelos grandes bancos internacionais.

JPMorgan, Goldman Sachs, HSBC e Citibank também estariam negociando comprar a dívida dos "abutres". Esses bancos venderam contratos que equivalem a "seguros" contra o calote argentino e podem ter prejuízo.

Além disso, desejam que o país volte ao mercado internacional para viabilizar novos negócios, como financiar os investimentos em um megacampo de gás.

Mas até agora ninguém tem certeza de que a iniciativa vai funcionar.

CRISE

Para as empresas instaladas no país, a situação é grave. "Já estávamos vivendo um default'", diz Miguel Ponce, gerente de relações institucionais da câmara de importadores local.

Segundo ele, fornecedores pedem que os argentinos paguem à vista, o crédito encarece e as empresas demitem.

Dante Sica, da consultoria Abeceb.com, diz que "o governo minimizou os efeitos do default'", que deve agravar a recessão e elevar a inflação.

Para os analistas, Cristina achou nos "abutres" e no juiz a justificativa perfeita para um eventual fracasso de seu mandato, que termina em outubro do ano que vem.


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