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Comportamento sexista faz parte da nova identidade

Vivendo como homens há anos, mulheres queixam-se da emancipação feminina no país

LUCAS NEVES COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, NA ALBÂNIA

"Sempre foi natural para mim me vestir de homem. Gostava de trabalhar no campo, andar a cavalohajdar bardhinascido Fatime BardhiAs albanesas hoje não pedem mais permissão ao homem, fazem o que querem. Os Estados Unidos e seus valores estão destruindo a Albânialali rakipinascido Diana Rakipi

Aonde quer que se vá no norte da Albânia, há alguém que diz conhecer e/ou saber como chegar a uma "burrnesha", mesmo que a afirmação desafie a lógica: não existem hoje mais do que 30 no país.

Em um périplo de quatro dias por nove cidades e vilarejos em busca das mulheres que juraram castidade para se tornar homens, a reportagem pouco ouve a resposta "não posso ajudá-lo" de comerciantes, motoristas, funcionários de hotel e transeuntes importunados às dezenas.

Entre pistas falsas, informações truncadas e as primeiras negativas (uma diz que contar sua história a jornalistas não melhorou seu nível de vida), delineiam-se os contornos de uma indústria das "virgens juradas", como as burrneshas são conhecidas em inglês (sworn virgins).

Os "cachês" por entrevista giram em torno dos 200 euros (R$ 650), e não faltam mediadores ávidos por "comissão".

A opção é instar o motorista do dia a acionar a sua rede de contatos.

Eis que, depois de dois telefonemas, uma estrada margeada por memoriais a vítimas de acidentes de trânsito e um pasto enlameado com meia dúzia de vacas, adentra-se à casa de Hajdar Bardhi, 84, em Mejdan.

Cercado de parentes, veste traje de gala: camisa social branca, calça idem, colete de linho vermelho, faixa dourada na cintura, chapéu e enorme relógio de pulso com brilhante. Por 1h30, irá sorrir muito, falar pouco e exibir linguagem corporal masculina, com mãos pousadas sobre pernas quase sempre abertas.

Hajdar nasceu Fatime, menina. Diz odiar mulheres --"mentirosas, fofoqueiras, criadoras de intrigas"-- desde a infância, quando a mãe o obrigava a pôr vestidos floridos e acessórios femininos. Mas trata bem as da família.

Ele conta que, ao surgir em roupas masculinas, as únicas em que se sentia confortável, apanhava. Tinha 14 anos quando, com a anuência do pai recém-saído da prisão, emancipou-se e passou a viver como homem.

A versão da sobrinha, mais alinhada com os achados antropológicos sobre burrneshas, sugere uma mudança de gênero posterior, provocada pelo vácuo de liderança masculina na família após a morte do irmão de Fatime.

O fato é que Hajdar não se alonga sobre os motivos e as circunstâncias de sua transformação --e não gosta de ser chamado pelo nome antigo.

"Sempre foi natural para mim me vestir de homem. Gostava de trabalhar no campo, andar a cavalo. Não sou louco. Decidi sozinho", diz.

Ao fim da conversa, Hajdar pede um cachê de 200 euros. A Folha não paga por entrevistas, responde o repórter. Para acalmar os ânimos, entra em cena o sobrinho que intermediara o encontro sem mencionar cifras.

No dia seguinte, o clima é menos tenso em Durrës, à beira-mar, ainda que Diana Rakipi, 60, aposentada há pouco do equivalente local à Capitania dos Portos, fale quase sempre com o dedo apontado para o rosto do interlocutor.

'NÃO TENHO AMIGAS'

Ela fez o juramento de virgindade aos 17, quando deu adeus às madeixas cacheadas e engavetou em definitivo as roupas femininas. "Só voltaria a usar saia se fosse à Escócia", brinca.

Agitada, bate a toda hora na mesa, diz aos quatro ventos não ter medo de ninguém, enfim, posa de xerife do pedaço --alguém que pode tanto constranger políticos com fotos que denunciam o descaso com o patrimônio quanto ir à escola da sobrinha confrontar um colega inconveniente.

O repertório sexista espelha o de Hajdar: "Não tenho amigas, não preciso disso. Saio com homens, tomamos cerveja e falamos de trabalho, dos filhos deles. As albanesas hoje não pedem mais permissão ao homem, fazem o que querem. Os Estados Unidos e seus valores estão destruindo a Albânia".

Também à maneira de Hajdar, dá respostas evasivas sobre a adoção de gestual e indumentária masculinos.

"Substituí o meu pai, que foi major e morreu honrado. Mas ele ainda era vivo quando passei a me vestir como homem. Chamava-me de filho. Ninguém me obrigou a ser assim. Cada mulher tem a sua história."


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